domingo, 10 de abril de 2011

Reúnem-se os pássaros

A conferência dos pássaros - Farid Ud-Din Attar

Reúnem-se os pássaros

Benvinda sejas, ó Poupa! Ó tu, que foste guia do rei Salomão e o verdadeiro mensageiro do vale, que tiveste a boa fortuna de chegar aos confins do reino de Sabá! Tua fala gorjeada com Salomão foi deliciosa; por teres sido sua companheira granjeaste uma coroa de glória. Precisas pôr a ferros o demônio, o tentador e, feito isso, entrarás no palácio de Salomão.

Ó Lavandisca, que te pareces com Moisés! Levanta a cabeça e faze soar a charamela, para celebrar o verdadeiro conhecimento de Deus. Como Moisés, viste o fogo de longe; és, de fato, um pequeno Moisés no monte Sinai. Meu discurso é sem palavras, sem língua, sem som; compreendo-o, pois, sem mente, sem ouvido.

Benvindo sejas, ó Papagaio! Em teu belo manto e colar de fogo, o colar se ajusta a um habitante do mundo inferior, mas o manto é digno do Céu. Pôde Abraão safar-se do fogo de Nenrode? Quebra a cabeça de Nenrode e torna-te amigo de Abraão, que era amigo de Deus. Quando te tiveres libertado das mãos de Nenrode, veste o manto de glória e não temas o colar de fogo.

Benvinda sejas, ó Perdiz! Ó tu, que andas com tanta graça e te comprazes em voar sobre as montanhas do conhecimento divino! Ergue-te em alegria e reflete nos benefícios do Caminho. Bate com o martelo na porta da casa de Deus; e derrete, humilde, as montanhas dos teus desejos perversos para deixar sair o camelo.

Saudações, ó Falcão Real! Ó tu, que tens a vista penetrante, quanto tempo permanecerás tão violento e apaixonado? Finca tuas garras na letra do amor eterno, mas não rompas o selo enquanto não chegar a eternidade. Mistura o espírito à razão e vê a eternidade anterior e a posterior como uma só. Quebra tua vil carcaça e instala-te na caverna da unidade, que Maomé irá ter contigo.

Saudações, ó Codorna! Quando ouves em teu espírito o alast do amor, o teu corpo de desejo responde: balé, com desprazer. Consome o teu corpo de desejo como o burro de Cristo e, logo, como o Messias, inflama-te com o amor do Criador. Queima esse burro e toma o pássaro do amor, para que o Espírito de Deus possa chegar felizmente a ti.

Saudações, ó Rouxinol do jardim do Amor! Desfere tuas notas plangentes causadas pelas feridas e dores do amor. Arranca do coração meigos lamentos, como Davi. Descerra tua garganta melodiosa e canta as coisas espirituais. Com tuas canções, mostra aos homens o verdadeiro Caminho. Torna o ferro do teu coração mole como a cera e serás como Davi, ardente no amor de Deus.

Saudações, ó Pavão do jardim das Oito Portas! Tu te afligiste por causa da serpente de sete cabeças, por cujo intermédio foste expulso do Éden. Se te livrares da serpente detestável, Adão te levará com ele ao Paraíso.

Saudações, ó Excelente Faisão! Enxergas o que está muito longe e percebes o manancial do coração imerso no oceano de luz enquanto permaneces no poço da escuridão e na prisão da incerteza. Sai do poço e ergue a cabeça para o trono divino.

Saudações, ó meiga Rolinha, que emites doces gemidos! Saíste contente e voltaste com a tristeza no coração para uma prisão tão estreita quanto a de Jonas. Ó tu, que vagueias para lá e para cá como um peixe, podes languir com malevolência? Corta a cabeça desse peixe para poderes alisar tuas penas nos píncaros da lua.

Saudações, ó Pombo! Entoa tuas notas para que eu possa espalhar à tua volta sete chapas de pérolas. Visto que o colar da fé te envolve o pescoço, não te ficaria bem ser infiel. Quando entrares no caminho da compreensão, Khizr te trará a água da vida.

Benvindo sejas, ó Falcão! Tu, que alçaste vôo e, depois de te rebelares contra o teu amo, curvaste a cabeça! Agüenta-te convenientemente. Estás amarrado ao corpo deste mundo e, assim, longe do outro. Quando estiveres livre dos mundos, descansarás na mão de Alexandre.

Benvindo sejas, ó Pintassilgo! Vem com alegria. Anseia por agir e vem como o fogo. Quando tiveres rompido teus vínculos, a luz de Deus se manifestará cada vez mais. Visto que o teu coração conhece os segredos de Deus, sê fiel. Quando te houveres aperfeiçoado deixarás de existir. Mas Deus subsistirá.

Abre-se a conferência

Todos os pássaros do mundo, conhecidos e desconhecidos, estavam reunidos. Disseram eles:

“Nenhum país do mundo carece de um rei. Como se dá, então, que o reino dos pássaros não tenha um dirigente? Esse estado de coisas não pode continuar. Precisamos congregar nossos esforços e sair à procura de um soberano; pois nenhum país pode ter uma boa administração e uma boa organização sem um rei”.

Principiaram, pois, a pensar em como planejar a busca. Emocionada e cheia de esperança, a Poupa adiantou-se e foi postar-se no meio dos pássaros reunidos em assembléia. Trazia no peito o ornamento que lhe simbolizava o ingresso no caminho do conhecimento espiritual; a crista na cabeça era como a coroa da verdade, e ela possuía o conhecimento do bem e do mal.

“Queridos pássaros”, principiou, “sou a que está empenhada na guerra divina, a mensageira do mundo invisível. Tenho o conhecimento de Deus e dos segredos da criação. Quando alguém carrega no bico, como eu, o nome de Deus, Bismillah, há de ter, por força, conhecimento de muitas coisas ocultas. Meus dias, contudo, passo-os na intranqüilidade, e não me ocupo de pessoa alguma, pois estou inteiramente ocupada com o amor ao rei. Sou capaz de encontrar água por instinto e conheço muitos outros segredos. Falo com Salomão, e sou a primeira entre seus seguidores. É espantoso que ele não tenha perguntado nem procurado pelos que se achavam ausentes do seu reino, e, no entanto, quando fiquei longe dele por um dia, enviou mensageiros a todos os lugares; e como ele não pode ficar sem mim nem por um momento, meu valor está confirmado para sempre. Carreguei-lhe as cartas e fui sua companheira e confidente. O pássaro que está sendo procurado pelo profeta Salomão merece ter uma coroa na cabeça. Como pode arrastar as penas no pó o pássaro bem-falado de Deus? Durante anos jornadeei por mar e por terra, sobrevoei montanhas e vales. Cobri imensa extensão no tempo do dilúvio; acompanhei Salomão em suas viagens e medi os limites do mundo.

“Conheço bem o meu rei, mas, sozinha, não posso planejar encontrá-lo. Abandonai vossa timidez, vossa presunção e vossa descrença, pois quem converte em luz a própria vida está liberto de si mesmo; está liberto do bem e do mal no caminho do amado. Sede generosos com a vida. Ponde os pés na terra e parti, alegres, para a corte do rei. Temos um rei de verdade, que vive atrás das montanhas chamadas Kaf. Chama-se Simurgh e é o rei dos pássaros. Está perto de nós, mas nós estamos longe dele. O sítio que habita é inacessível, e nenhuma língua consegue pronunciar-lhe o nome. Diante dele pendem cem mil véus de luz e treva, e nos dois mundos ninguém tem o poder de disputar-lhe o reino. Ele é o senhor soberano e banha-se na perfeição da sua majestade. Não se manifesta abertamente nem mesmo no local da sua habitação, e a esta nenhum conhecimento e nenhuma inteligência podem chegar. O caminho é desconhecido, e ninguém possui constância para procurá-lo, embora milhares de criaturas passem a vida anelando por isso. Nem mesmo a alma mais pura é capaz de descrevê-lo, nem pode a razão compreendê-lo: esses dois olhos estão cegos. Não é dado ao sábio descobrir-lhe a perfeição nem ao homem de entendimento perceber-lhe a beleza. Todas as criaturas têm desejado chegar a essa perfeição e a essa beleza pela imaginação. Mas como palmilhar o caminho com o pensamento? Como medir a lua pelo peixe? Destarte, milhares de cabeças movem-se para lá e para cá, como a bola no jogo de pólo, e só se ouvem lamentações e suspiros de desejo. Muitas terras e mares estão no caminho. Não imagineis que o percurso seja curto; e cumpre ter um coração de leão para percorrer essa estrada insólita, pois ela é muito longa e o mar é fundo. Anda-se laboriosamente num estado de assombro, às vezes sorrindo, chorando às vezes. Quanto a mim, sentir-me-ei feliz se descobrir, pelo menos, um vestígio dele.

Isso seria, com efeito, alguma coisa, mas viver sem ele é uma desgraça. O homem não precisa proteger sua alma do amado, mas precisa estar preparado para levá-la à corte do rei. Lavai as mãos desta vida se quiserdes ser chamados homens de ação. Por vosso amado, renunciai à vida a que tanto quereis, como homens dignos. Se vos sujeitardes com graça, o amado dará a vida por vós.”

Primeira manifestação do Simurgh

“Espantoso! A primeira manifestação do Simurgh verificou-se na China, no meio da noite. Uma de suas penas caiu na China e sua fama encheu o mundo. Todos fizeram um desenho da pena e dela formaram seu próprio sistema de idéias, do que resultou caírem numa confusão. A pena ainda está na galeria de quadros daquele país; daí o dito: ‘Busca o conhecimento até na China!’

“Não fora essa manifestação e não se teria feito tanto barulho no mundo em torno do misterioso Ser. Este sinal de existência é um testemunho de glória. Todas as almas levam uma impressão da imagem da pena. Visto que a sua descrição não tem pés nem cabeça, nem princípio nem fim, já não e necessário falar sobre ela. Agora, se algum de vós estiver disposto a enfrentar a estrada, preparai-vos e ponde os pés no Caminho.”

Assim que a Poupa terminou, os pássaros se puseram a discutir, emocionados, a glória desse rei, e, ansiando por tê-lo como seu próprio soberano, mostraram-se todos impacientes por partir. Resolveram ir juntos; cada qual se tornou amigo do outro e inimigo de si mesmo. Mas quando começaram a compreender quão longa e penosa seria a viagem, hesitaram e, apesar da aparente boa vontade, entraram a escusar-se, cada qual de acordo com o seu tipo.

O Rouxinol

O amoroso Rouxinol foi o primeiro a adiantar-se, quase fora de si de paixão. Cada uma das mil notas do seu cantar extravasava emoção; e cada qual encerrava um mundo de segredos. Quando ele cantava esses mistérios, os pássaros silenciavam.

“Conheço os segredos do amor”, disse. “Repito a noite inteira meus cantos amorosos. Não haverá um Davi infeliz para quem eu possa cantar os salmos ansiosos de amor? Por minha causa emite a flauta seus meigos queixumes e o alaúde, seus lamentos. Crio um tumulto entre as rosas e no coração dos amantes. Ensino sempre mistérios novos e, a cada instante, repito novos cantos de tristeza. Quando o amor me subjuga o coração, meu canto é como o suspiroso mar. Quem me ouve deixa de lado a razão, ainda que figure entre os sábios. Quando me separo de minha querida Rosa fico desolado, deixo de cantar e não conto a ninguém meus segredos. Meus segredos não são conhecidos de todos; só a Rosa os conhece com certeza. Estou tão enamorado dela que não penso sequer na minha existência; pois só penso na Rosa e no coral das suas pétalas. A jornada em demanda do Simurgh está acima das minhas forças; o amor da Rosa basta ao Rouxinol. É para mim que ela floresce com suas cem pétalas; que mais, portanto, posso desejar? A Rosa que hoje se enflora está cheia de desejo e sorri para mim com alegria. Quando mostra o rosto sob o véu, sei que o mostra para mim. Como pode, pois, privar-se o Rouxinol, nem que seja por uma só noite, do amor de sua feiticeira?”

A Poupa

A Poupa replicou:

“Ó Rouxinol, tu, que serias capaz de ficar para trás, deslumbrado pela forma exterior das coisas, não te deleites mais com um apego tão ilusório. O amor da Rosa tem muitos espinhos; ela te perturbou e dominou. Embora seja bela, sua beleza logo se esvai. Quem procura a própria perfeição não deve deixar-se escravizar por um amor tão fugaz. Embora o sorriso da Rosa te desperte o desejo, ele só te encherá os dias e as noites de lástimas. Abandona a Rosa e enrubesce-te por ti mesmo: pois ela se ri de ti a cada nova primavera e depois já não sorri”.

A Poupa conta a história da princesa e do dervixe

Um rei possuía uma filha linda como a lua, que era amada de todos. Seus olhos lânguidos e a suave embriaguez da sua presença despertavam paixão. Tinha o rosto alvo como a cânfora, e seus cabelos negros recendiam a almíscar. A inveja dos seus lábios ressecava um rubi da mais pura água, ao passo que o açúcar se derretia neles de vergonha. Por vontade do destino, um dervixe a viu, e o pão que trazia lhe caiu das mãos. Ela passou por ele como uma chama e, ao passar, riu-se. Ao vê-lo assim, o dervixe caiu ao chão, quase sem vida. Não conseguia descansar nem de dia nem de noite e chorava sem parar. Quando pensava no sorriso dela, derramava lágrimas como as nuvens derramam chuva. Esse amor desvairado durou sete anos, durante os quais ele viveu na rua com os cachorros. Afinal, os criados dela resolveram matá-lo. Mas a princesa, falando-lhe em segredo, disse:

“Como é possível que haja relações íntimas entre mim e ti? Vai-te incontinenti ou serás morto; não fiques nem por mais um minuto à minha porta, mas levanta-te e vai”. O pobre dervixe replicou:

“No dia em que me apaixonei por ti deixei de preocupar-me com a vida. Milhares como eu se sacrificam pela tua beleza. Visto que teus homens estão dispostos a matar-me injustamente, responde a só uma pergunta: Por que sorriste para mim no dia em que te tornaste a causa da minha morte?”

“Ó néscio”, volveu ela, “quando vi que estavas a pique de te humilhares, sorri de piedade. Posso sorrir de piedade, mas não de escárnio.”

Dito isso, desvaneceu-se como um penacho de fumaça, deixando o dervixe desolado.

O Papagaio

Veio depois o Papagaio, com açúcar no bico, envergando uma roupa verde e trazendo ao pescoço um colar de ouro. O Falcão não passava de um mosquito ao lado do seu esplendor: o tapete verde da terra é o reflexo das suas penas, e suas palavras são açúcar destilado. Ouçam-no: “Homens vis com coração de ferro fecharam-me numa gaiola por ser eu tão encantador. Enclausurado nesta prisão, ambiciono a fonte da água da imortalidade guardada por Khizr. Como ele, visto-me de verde, pois sou um Khizr entre os pássaros. Eu quisera ir à fonte dessa água, mas uma mariposa não tem forças para alar-se à grande casa de Simurgh; basta-me a primavera de Khizr”.

Retrucou a Poupa:

“Ó tu, que não tens idéia da felicidade! Aquele que não está disposto a renunciar à vida não é homem. A vida te foi concedida para que possas, por um instante, ter um digno amigo. Começa a percorrer o Caminho, pois não és nenhuma amêndoa, és apenas a casca. Entra na companhia de homens dignos e segue livremente o Caminho deles”.

O louco de Deus e Khizr

Havia um homem louco de amor a Deus. Disse-lhe Khizr:

“Ó homem perfeito, queres ser meu amigo?” O interpelado retrucou:

“Tu e eu não somos compatíveis, pois bebeste grandes sorvos da água da imortalidade, de modo que existirás para sempre, ao passo que eu desejo renunciar à vida. Não tenho amigos e nem sei como sustentar-me. E enquanto te ocupas em preservar tua vida, sacrifico a minha todos os dias. É melhor que eu te deixe, como os pássaros escapam da armadilha; por isso, adeus”.

O Pavão

Em seguida veio o Pavão, com penas de cem — como direi? — de cem mil cores. Exibia-se, virando-se de um lado para outro, como se fosse uma noiva.

“O pintor do mundo,” jactou-se ele, “pegou na mão o pincel do djim para modelar-me. Mas se bem eu seja um Gabriel entre os pássaros, minha sina não é ser invejado. Eu me dava bem com a serpente no paraíso terreal, e por isso fui ignominiosamente escorraçado de lá. Os que confiavam em mim privaram-me de uma posição de confiança, e meus pés foram minha prisão. Mas estou sempre à espera de um guia benevolente que me conduza para fora desta escura morada e me leve às mansões eternas. Não espero chegar ao rei de que falais, bastar-me-á chegar ao seu portão. Como podeis esperar que me esforce por alcançar o Simurgh se já vivi no paraíso terreno? Não tenho outro desejo senão voltar a morar lá. Nada mais tem qualquer sentido para mim.”

Redarguiu a Poupa:

“Estás te desviando do verdadeiro Caminho. O palácio deste rei é muito superior ao teu paraíso. Não podes fazer nada melhor do que te esforçares por alcançá-lo. É a morada da alma, a eternidade, o objeto de nossos verdadeiros desejos, a morada do coração, a sede da verdade. O Altíssimo é um vasto oceano; o paraíso da bem-aventurança terrena não passa de uma gotinha; tudo o que não for esse oceano será loucura. Se podes ter o oceano, por que procuras uma gota do aljôfar vespertino? Aquele que partilha dos segredos do sol deve, acaso, perder tempo com um grãozinho de poeira? O que tem tudo preocupa-se com a parte? Ocupa-se a alma dos membros do corpo? Se queres ser perfeito busca o todo, elege o todo, sê total”.

O mestre e o discípulo

Um discípulo perguntou ao mestre:

“Por que foi Adão obrigado a sair do Paraíso?” O mestre respondeu:

“Quando Adão, a mais nobre das criaturas, entrou no Paraíso, ouviu uma voz vibrante vinda do mundo invisível: ‘Ó vós, que estais atados ao paraíso terrestre por uma centena de laços, sabei que priva de tudo o que existe visivelmente aquele que, nos dois mundos, estiver identificado com o que surge entre mim e ele, de modo que venha a atar-se apenas a mim, seu verdadeiro amigo’. Para o amante, cem mil vidas nada são sem o amado. Quem viveu para alguma coisa que não fosse Ele, ainda que se tratasse do próprio Adão, foi expulso. Os habitantes do Paraíso sabem que a primeira coisa a que devem renunciar é o coração”.

O Pato

Envergando o seu manto mais belo, o Pato saiu, tímido, da água e subiu até a assembléia.

“Ninguém jamais falou a uma criatura mais linda nem mais pura do que eu,” disse ele. “A cada hora faço as abluções costumeiras, e depois estendo sobre a água o tapete da oração. Que pássaro é capaz de viver e mover-se na água como eu? Nisto possuo um poder maravilhoso. Entre os pássaros sou um penitente de vista clara e roupas limpas; e vivo num elemento puro. Nada me é mais proveitoso do que a água, pois nela encontro meu alimento e nela tenho minha morada. Se me vexam dificuldades, lavo-as na água. Águas claras alimentam a corrente em que vivo, não amo a terra seca. Assim sendo, se o meu único cuidado é a água, por que haveria eu de deixá-la? Tudo o que vive vive pela água. Como poderei cruzar os ares e voar até o Simurgh? Como haverá alguém como eu, que se contenta com a superfície da água, de ter a ambição de ver o Simurgh?”

Contraveio a Poupa:

“Ó tu, cujo deleite reside na água, que te ocupa toda a vida! Modorras, indolente, ali — mas lá vem uma onda e te leva de roldão. A água só é boa para os que têm boa compostura e o rosto limpo. Se assim és, muito bem! Mas por quanto tempo permanecerás limpo e puro como a água?”

A história do homem piedoso

Alguém perguntou a um santo idiota: “Quais são os dois mundos que sempre nos ocupam o pensamento?”

E o idiota respondeu: “Tanto o mundo superior quanto o inferior são como a gota d’água, que é e não é. Foi uma gota d’água que se manifestou no princípio, e depois assumiu inúmeras formas encantadoras. Todas as aparências são como a água. Nada é mais duro do que o ferro e, não obstante isso, ele sabe que se origina da água. Mas nada do que tem por base a água, incluindo o ferro, é mais real do que o sonho. A água não é estável”.

A Perdiz

A Perdiz aproximou-se a seguir, graciosa mas enfatuada. Acanhada, levanta-se do seu tesouro de pérolas em suas vestes de aurora. Com os olhos orlados de sangue e o bico vermelho, voa com a cabeça ligeiramente virada, carregando o cinto e a espada. Disse ela:

“Gosto de errar por entre as ruínas, pois amo as pedras preciosas. Elas me acenderam um fogo no coração, e isso me satisfaz. Quando ardo em desejo por elas, as pedras que engoli como que se tingem de sangue. Muitas vezes, porém, vejo-me entre pedras e fogo, inativa e perplexa. Ó meus amigos, vede como vivo! Será possível despertar alguém que dorme sobre pedras e engole cascalho?

“Meu coração está ferido por uma centena de dores porque meu amor às pedras preciosas me prendeu à montanha. O amor às outras coisas é transitório; o reino das jóias é eterno, pois elas são a essência eterna da montanha. Conheço as montanhas e as pedras preciosas. Com meu cinto e minha espada estou sempre à cata do diamante, e ainda não descobri uma substância de natureza mais sublime do que as pedras preciosas — nem a pérola é tão bela. Ademais, o caminho para o Simurgh é difícil, e meus pés estão presos às pedras como se estivessem enterrados no lodo. Como poderei esperar chegar corajosamente à presença do poderoso Simurgh com a mão na cabeça e os pés no barro? Descobrirei pedras preciosas ou morrerei. Minha nobreza é evidente, e quem não pensa como eu não merece consideração”.

Acudiu a Poupa:

“Ó tu, que tens as cores de todas as pedras, mancas um pouco e dás desculpas coxas. O sangue do coração mancha-te as garras e o bico, e tua busca te avilta. As jóias não são mais do que pedras coloridas, e, no entanto, o amor delas te endurece o coração. Sem as suas cores, não passariam de seixozinhos ordinários. Quem tem o perfume não procura a cor; quem possui a essência não a deixa pelo brilho da forma exterior. Procura a verdadeira jóia de boa qualidade e não te contentes com a pedra”.

A anel de Salomão

Nenhuma pedra foi tão famosa quanto a do anel de Salomão, embora fosse muito simples e não pesasse mais do que meio daneque. Mas quando Salomão fez dela um selo, toda a terra ficou sob o seu império. Estabeleceu-se-lhe o domínio, e sua lei se estendeu até os horizontes distantes. Conquanto o vento lhe carregasse a vontade a todos os quadrantes, ele só possuía uma pedra de meio daneque. E disse:

“Já que o meu reino e o meu domínio dependem desta pedra, daqui por diante ninguém terá tamanho poder”.

Embora Salomão tenha se tornado um grande rei à custa do seu selo, este lhe atrasou o progresso no caminho espiritual; e ele chegou ao Paraíso do Éden quinhentos anos depois dos outros profetas. Se uma pedra foi capaz de surtir esse efeito em relação a Salomão, que não poderia ela fazer a um ser como tu, pobre Perdiz? Afasta o coração das jóias comuns. Procura a jóia verdadeira e continua no encalço do Bom Joalheiro.

O “Humay"

Agora era o Humay que se erguia diante da assembléia, o Doador da Treva cuja sombra confere pompa aos reis. Por isso recebeu o nome de “Humayan,” o felizardo, visto que de todas as criaturas é a mais ambiciosa. E disse:

“Pássaros da terra e do mar, não sou uma ave como vós. Move-me alta ambição, e, para satisfazê-la, separei-me das outras criaturas. Sujeitei o cão do desejo, portanto sou Feridon e Jamshid dignificados. Erguem-se reis sob influência da minha sombra, mas os homens que têm a natureza dos mendigos não me agradam. Dou um osso ao cão do meu desejo e ponho meu espírito no seguro contra ele. Como podem os homens voltar o rosto àquele cuja sombra cria reis? Toda gente procura abrigo debaixo das minhas asas. Necessito, porventura, da amizade do nobre Simurgh se tenho a realeza ao meu dispor?”

Redarguiu a Poupa:

“Ó escravo do orgulho! Não estendas mais a tua sombra e não te vanglories mais de ti. Neste momento, longe de conferir poder a reis, pareces um cachorro entretido com um osso. Não consinta Deus que ponhas um Chosróes no trono. Mas supondo que a tua sombra entronize governantes, amanhã eles serão presa do infortúnio e despojados da realeza, ao passo que, se nunca tivessem visto a tua sombra, não teriam de enfrentar um ajuste de contas tão terrível no último dia”.

Mahmud e o sábio

Um homem piedoso, que estava no verdadeiro Caminho, viu em sonhos o sultão Mahmud e disse-lhe:

“Ó auspicioso rei, como vão as coisas no Reino da Eternidade?”

Ao que o sultão replicou:

“Espanca-me o corpo, se quiseres, mas deixa a minha alma em paz. Não digas nada, e parte, pois aqui não se fala em realeza. Meu poder era apenas vaidade e presunção, fantasia e erro. Pode a soberania exaltar um punhado de terra? A soberania pertence a Deus, Mestre do Universo. Agora que me dei conta de minhas fraquezas e de minha impotência, envergonho-me de minha realeza. Se quiseres dar-me um título, dá-me o de ‘atormentado’. Deus é o Rei da Natureza, por isso não me chames de rei. O império pertence a ele; e eu seria feliz agora se fosse um simples dervixe na terra. Oxalá tivesse ele uma centena de poços em que pudesse enfiar-me para que eu nunca fosse um soberano. Fora melhor ter sido respigador num milharal. Chama Mahmud de escravo. Dá minhas bênçãos a meu filho Masud, e dize-lhe: ‘Se tiveres entendimento, toma ensino com o estado de teu pai. Que sequem as asas e as penas daquele Humay que lançou sua sombra sobre mim!’”

O Falcão desculpa-se

Veio, a seguir, o Falcão, de cabeça erguida e porte de soldado. E disse:

“Eu, que me deleito na companhia de reis, não dou atenção a outras criaturas. Cubro os olhos com um capelo para poder pôr os pés na mão do rei. Estou perfeitamente adestrado nas regras do proceder polido e pratico a abstinência como qualquer penitente, de sorte que, levado à presença de um rei, cumpro minhas obrigações exatamente como se espera que eu as cumpra. Por que haveria eu de ver Simurgh, ainda que fosse em sonhos? Por que haveria de correr desatinadamente para ele? Não me sinto chamado a participar dessa jornada. Satisfaço-me com um petisco das mãos do rei; sua corte é tudo o que quero. Quem goza dos favores reais vê realizado o seu desejo; e para ser agradável ao rei, basta-me voar através dos vales sem limites. Não tenho outro desejo senão passar a vida festivamente deste modo — esperando pelo rei ou caçando para agradar-lhe”.

Resposta da Poupa

Disse a Poupa:

“Ó tu, que estás apegado à forma exterior das coisas e não curas dos valores essenciais, o Simurgh é um ser cuja realeza lhe assenta bem porque é único no poder. Nenhum rei verdadeiro exercita nesciamente a sua vontade. O rei verdadeiro é criterioso e magnânimo. Conquanto possa amiúde ser justo, o rei terreno também pode ser culpado de injustiça. Quanto mais perto estivermos dele, tanto mais delicada será a nossa posição. O crente não pode deixar de ofender o rei, de modo que sua vida está, não raro, em perigo. Visto que se compara o rei ao fogo, mantende-vos distantes! Ó vós, que tendes vivido ao pé de reis, cuidado! Prestai atenção a isto: Era uma vez um nobre rei que tinha um escravo cujo corpo se diria feito de prata. Amava-o tanto que não podia separar-se dele nem por um minuto. Deu-lhe os mais belos trajes e colocou-o acima dos seus iguais. Às vezes, porém, o rei divertia-se disparando setas; colocava uma maçã na cabeça do favorito e usava-a como alvo. E quando o rei desfechava o tiro, o escravo ficava amarelo de medo. Um dia, alguém lhe perguntou:

‘Por que teu rosto tem a cor do ouro? Não és o favorito? Por que, então, essa palidez mortal?’

E o escravo respondeu:

‘Se o rei me atingisse em vez de atingir o alvo, diria: — Este escravo é a coisa mais inútil que há na minha corte; — mas quando a flecha atinge o alvo, todos atribuem o feito à sua perícia. Pelo que me toca, nesta penosa situação, só me resta esperar que o rei continue a atirar bem!’

A Garça

A Garça chegou toda apressada e pôs-se, de pronto, a falar de si:

“Minha linda casa fica à beira do mar, entre as lagoas, onde ninguém me ouve cantar. Sou tão inofensiva que ninguém se queixa de mim. Triste e melancólica quedo-me, pensativa, à beira do mar salgado, com o coração cheio de desejo da água, pois se não houvesse nenhuma que seria de mim? Mas como não sou das que moram no mar, é bem possível que eu morra um dia na praia, com a boca seca. Conquanto as águas fervam e as ondas venham quebrar-se a meus pés, não posso engolir uma só gota; entretanto, se o oceano viesse a perder um pouco da sua água, meu coração arderia de aflição. Para uma criatura como eu, a paixão pelo mar é bastante. Não tenho forças que me permitam sair em busca do Simurgh, por isso peço que me dispensem. Como poderia alguém como eu, que busca apenas uma gota d’água, atingir possivelmente a união com o Simurgh?”

Disse a Poupa:

“Ó ignorante do mar, não sabes que ele está cheio de crocodilos e outras criaturas perigosas? Às vezes sua água é amarga, às vezes salgada; às vezes é calma, às vezes turbulenta; está sempre mudando, nunca é estável; às vezes flui, às vezes reflui. Muitos grandes foram engolidos pelo seu abismo. O mergulhador nas profundezas prende a respiração para não ser vomitado como uma haste de palha. O mar é um elemento sem lealdade. Não te fies nele, pois poderá acabar te afogando. É inquieto por causa do amor que dedica ao amigo. As vezes, rola grandes vagalhões, às vezes ruge. Já que o mar não encontra o que deseja, como encontrarás nele um lugar de descanso para o coração? O oceano é um riacho que se ergue no caminho que conduz ao amigo; por que, então, ficarias aqui contente e não forcejarias por ver o rosto do Simurgh?”

O sábio e o oceano

Um sábio que tinha por hábito ponderar no significado das coisas dirigiu-se ao Oceano e perguntou-lhe por que usava vestimentas azuis, já que o azul era a cor do luto, e por que fervia sem fogo.

O Oceano respondeu ao homem contemplativo: “Sinto-me perturbado porque estou separado do meu amigo. Em virtude da minha insuficiência, não sou digno dele, por isso visto roupas azuis como sinal do remorso que me tortura. Na minha aflição, as praias dos meus lábios estão secas, e em razão do fogo do meu amor estou alvoroçado. Pudesse eu encontrar uma só gota da água celestial do Kausar e estaria de posse da porta da vida eterna. À míngua dessa gota, morrerei de desejo, como os milhares de outros que perecem no caminho”.

A Coruja

Adiantou-se a Coruja com ar perplexo e foi logo dizendo:

“Escolhi para morar uma casa em ruínas e que está caindo aos pedaços. Nasci entre ruínas e nelas me aprazo — mas sem beber vinho. Conheço centenas de lugares habitados, mas alguns se acham em estado de confusão e outros em estado de ódio. Quem quiser viver em paz deverá procurar as ruínas, como fazem os loucos. Só me sinto deprimida entre elas por causa do tesouro oculto. O amor ao tesouro arrasta-me para lá, pois ele se acha entre as ruínas. Além disso, posso esconder minha busca ansiosa e espero encontrar um tesouro que não esteja protegido por nenhum talismã; se o meu pé topar com algum, estará realizado o desejo do meu coração. Acredito que o amor do Simurgh não seja uma fábula, pois não o sentem os desatentos; mas sou fraca e estou longe de ser constante no seu amor, visto que só amo meu tesouro e minhas ruínas”.

A Poupa respondeu-lhe:

“Ó tu que estás bêbeda do amor das riquezas, supõe que encontres um tesouro! Pois bem, morrerás sobre ele, e tua vida se terá esvaído sem que tenhas alcançado o alto propósito de que, afinal, estás ciente. O amor do ouro é uma característica dos pagãos. Aquele que faz do ouro um outro é outro Tharé. Não te tornarás, acaso, igual a um samiri dos israelitas, que fabricaram o bezerro de ouro? Não sabes que todo aquele que se deixa corromper pelo amor ao ouro, terá, no dia da ressurreição, o rosto mudado, qual moeda falsa, e ficará com cara de camundongo?”

O avarento

Um bêbedo escondeu um cofre de ouro e, logo depois, morreu. Um ano mais tarde, seu filho viu-o em sonhos, na forma de um camundongo, com os olhos rasos d’água, correndo de um lado para outro no local em que o ouro fora escondido. Perguntou-lhe o filho:

“Que estás fazendo aqui?”

“Escondi um pouco de ouro e vim ver se alguém o descobriu”, retrucou o pai.

“Mas por que assumiste a forma de um camundongo?”, volveu o filho.

“Porque a alma do homem que renuncia a tudo por amor ao dinheiro assume essa forma”, respondeu o pai. “Atenta para mim, filho, e tira proveito do que estás vendo. Renuncia ao amor ao ouro!”

O Pardal

Veio então o Pardal, de corpo frágil e terno coração, tremendo da cabeça aos pés, como se fora uma chama. E disse:

“Estou atônito e desanimado. Não sei como existir e sou frágil como um fio de cabelo. Ninguém me ajuda, e não tenho sequer a força de uma formiga. Tampouco possuo penugem ou penas — nada. Como há de um covarde como eu viajar até onde está o Simurgh? Um simples pardal nunca o faria. Não faltam no mundo os que procuram essa união, mas ela não se coaduna com um ser como eu. Não desejo encetar uma jornada trabalhosa como essa por algo que jamais alcançarei. Se eu partisse em busca da corte do Simurgh acabaria morrendo no caminho. Portanto, já que não estou, de modo algum, em condições de levar a cabo o empreendimento, contentar-me-ei com procurar aqui o meu José no poço. Se o encontrar e tirar dali, alçarei vôo com ele do peixe à lua”.

A Poupa recalcitrou:

“Ó tu que em teu desalento és por vezes triste, por vezes alegre, não me iludem tuas alegações artificiosas. Pequeno hipócrita! Até na humildade mostras uma centena de sinais de vaidade e orgulho. Nem mais uma palavra! Fecha o bico e põe-te a caminho. Se morreres, morrerás com os outros. E não te compares a José!”

A história de Jacó

Quando levaram José, seu pai, Jacó, perdeu a vista à conta das lágrimas de sangue que vertiam seus olhos. O nome de José não lhe saía dos lábios. Por fim, o anjo Gabriel foi ter com ele e ameaçou-o:

“Se tornares a pronunciar, mais uma vez, a palavra José, riscarei o teu nome do rol dos profetas e mensageiros”.

Quando Jacó recebeu essa mensagem de Deus, o nome de José foi levantado da sua língua, mas ele não cessou de repeti-lo no coração. Certa noite, vendo José num sonho, quis chamá-lo, mas lembrou-se da ordem de Deus, golpeou o peito e arrancou um suspiro triste do coração imaculado. Voltou, então, Gabriel:

“Deus disse que, se bem não tenhas pronunciado o nome ‘José’ com a língua, suspiraste e com isso destruíste todo o efeito do teu arrependimento”.

Discussão entre a Poupa e os pássaros

Todos os pássaros, um depois do outro, começaram, então, a apresentar justificações tolas. Desculpa-me, leitor, se não as repito, pois isso levaria muito tempo. Mas como podem tais pássaros enredar o Simurgh em suas garras? Assim sendo, a Poupa continuou o seu discurso:

“Quem prefere o Simurgh à própria vida precisa lutar corajosamente consigo mesmo. Se o teu estômago não digere sequer um grão, como participarás do festim do Simurgh? Quando hesitas diante de um golezinho de vinho, como beberás a grande taça, ó paladino? Se te falta a energia de um átomo, como encontrarás o tesouro do sol? Se podes afogar-te numa gota d’água, como irás das profundezas do mar às alturas celestiais? Este não é um simples perfume, nem tarefa para quem não tem o rosto limpo”.

Quando os pássaros acharam que o discurso terminara, voltaram a falar à Poupa:

“Tu te encarregaste de mostrar-nos o caminho, tu, o melhor e mais poderoso dos pássaros. Mas somos frágeis, sem penugem nem penas, e, assim, como conseguiremos alcançar o Sublime Simurgh? Só por um milagre. Dize-nos alguma coisa sobre esse maravilhoso Ser, nem que seja por meio de um símile, senão, cegos que somos, nada perceberemos do mistério. Se houvesse alguma relação entre esse Ser e nós, ser-nos-ia muito mais fácil encetar a jornada. Mas do jeito que o vemos, ele pode comparar-se a Salomão, e nós, a formigas mendicantes. Como há de um inseto no fundo de um poço alçar-se até o grande Simurgh? Será a realeza o quinhão do mendigo?”

Resposta da Poupa

Disse a Poupa:

“Ó pássaros sem aspiração! Como poderá saltar à vontade o amor num coração privado de sensibilidade? Considerar a questão dessa maneira, que parece agradar-vos, não redundará em nada. Quem ama parte de olhos abertos rumo à sua meta e brinca com a própria vida.

“Quando o Simurgh se apresentou fora do véu, radioso como o sol, projetou milhares de sombras sobre a terra. E quando olhou para essas sombras, surgiram pássaros em grande quantidade. Portanto, os diferentes tipos de aves que se vêem no mundo são apenas a sombra do Simurgh. Sabei, pois, ó ignorantes, que, quando compreenderdes isso, compreendereis exatamente a vossa relação com o Simurgh. Refleti sobre o mistério, mas não o reveleis. Quem adquire este conhecimento afunda-se na imensidade do Simurgh, embora não deva pensar, por isso, que é Deus.

“Se vos tornardes isso de que vos falo não sereis Deus, mas estareis mergulhados em Deus. Um homem assim imerso transubstancia-se? Quando compreenderdes de quem sois a sombra tornar-vos-eis indiferentes à vida ou à morte. Se o Simurgh não pretendesse manifestar-se, não teria lançado a sua sombra; se tivesse desejado permanecer escondido, sua sombra não teria aparecido no mundo. Tudo o que é produzido por ela torna-se visível. Se o vosso espírito não estiver afinado para ver o Simurgh, tampouco será o vosso coração um espelho brilhante, ajustado para refleti-lo. Na verdade, nenhum olho é capaz de contemplar-lhe a beleza e maravilhar-se dela, nem é capaz de entendimento; não podemos sentir-nos, em relação ao Simurgh, como nos sentimos em relação à beleza deste mundo. Mas por sua graça abundante ele nos deu um espelho onde ele se reflete, e esse espelho é o coração. Olhai para o vosso coração e nele vereis a imagem do Simurgh”.

O rei encantador

Era uma vez um rei dotado de encanto e beleza incomparáveis. A aurora era um relampejar do seu semblante; o anjo Gabriel, uma emanação da sua fragrância; e o reino da beleza, o Corão dos seus segredos. Sua fama espalhava-se por todo o mundo, e todas as criaturas o amavam. Quando passava pela cidade a cavalo, cobria o rosto com um véu carmesim; mas até os que olhavam para o véu perdiam a cabeça, e os que lhe pronunciavam o nome de repente cortavam a língua. Milhares morriam por amor a ele; outros davam a própria vida, crentes de que era melhor morrer naquele instante do que viver cem anos longe dele. Assombroso! Não podiam suportar-lhe a presença por muito tempo e, contudo, não podiam viver sem ele. Entretanto, ele se mostrava aos que conseguiam suportar-lhe a vista; os que não o conseguiam tinham de contentar-se com ouvir-lhe a voz. Em vista disso, o rei ordenou que se confeccionasse um espelho para que seu rosto fosse visto indiretamente. O espelho foi colocado no alto do palácio, e o rei ia mirar-se nele para que todos pudessem ver-lhe o reflexo.

O mesmo sucede conosco. Se amas a beleza do teu amigo, entende que o teu coração é o espelho, vê nele o teu rei na mansão da sua glória. As aparências todas nada mais são do que a sombra misteriosa do Simurgh. Se ele te houvesse revelado a sua beleza, tu a terias reconhecido na sua sombra. Ainda que existissem trinta pássaros Simurgh, ou quarenta, só lhe verias a sombra. O Simurgh não se distingue da própria sombra, e afirmar o contrário é laborar em erro; um e outro existem juntos. Busca a reunião; ou melhor, deixa a sombra e descobrirás o Segredo; se tiveres sorte verás o Sol na sombra; mas, se te perderes na sombra, como realizarás a união com o Simurgh?

Mahmud e Ayaz

Perseguido pelo mau-olhado, Ayaz precisou deixar a corte do sultão Mahmud. Desesperado, caiu em profunda melancolia, deitou-se na cama e pôs-se a chorar. Quando Mahmud soube disso, ordenou a um dos seus serviçais:

“Vai ter com Ayaz e dize-lhe: ‘Sei que estás triste, mas eu também estou no mesmo estado. Embora meu corpo esteja longe de ti, meu espírito está perto. Ó tu que me amas, não me ausento de ti nem por um momento. Com efeito, o mau-olhado fez mal afligindo uma criatura tão encantadora!’ “ E, logo, acrescentou:

“Vai incontinenti, vai como o fogo, vai como a água que jorra, vai como o raio antes do trovão!”

Partiu o serviçal como o vento e, num instante, chegou aonde estava Ayaz. Mas ali já encontrou o sultão, sentado diante do escravo. E, tremendo, disse para si: “Que infelicidade ter de servir a um rei! Meu sangue, sem dúvida, será derramado hoje!” Em seguida, dirigindo-se ao sultão, afirmou:

“Asseguro-vos que não parei nem por um momento, nem sentado nem de pé; como foi, então, que o rei chegou aqui antes de mim? O rei não me acredita? Se fui negligente de algum modo, penitencio-me”.

“Não és Mahram”, respondeu Mahmud, “como poderias, pois, viajar como eu? Vim por um caminho secreto. Quando pedi notícias de Ayaz, meu espírito já estava com ele.”

A Poupa lhes fala da viagem proposta

Quando ela concluiu o seu discurso, os pássaros começaram a entender alguma coisa dos mistérios antigos e da relação entre eles e o Simurgh. Mas conquanto sentissem o desejo de fazer a viagem, hesitavam em partir, pois as dúvidas ainda lhes perturbavam a mente. Por isso disseram à Poupa:

“Queres que abandonemos, desde já, a nossa existência tranquila? Nós, frágeis pássaros, não podemos esperar encontrar, sozinhos, o caminho da sublime morada em que o Simurgh tem o seu ser”.

A Poupa replicou:

“Falo-vos como vosso guia. Quem ama não pensa na própria vida; para amar de verdade o homem precisa esquecer-se de si, ser asceta ou libertino. Se os vossos desejos não estão de acordo com o vosso espírito, sacrificai-os, e chegareis ao termo da viagem. Se o corpo de desejo obstrui o caminho, rejeitai-o; em seguida, dirigi a vista para a frente e olhai. Um ignorante perguntará: ‘Qual é a conexão entre crença ou descrença e amor?’ Pois eu digo: ‘Os amantes, acaso, dão valor à vida? O amante ateia fogo a toda esperança de colheita, encosta a lâmina na garganta, perfura o corpo. Com o amor vem a tristeza e o sangue do coração. O amor ama as coisas difíceis’.

“Ó Escanção! Enche-me a taça com o sangue do meu coração e, se não restar mais nada, dá-me a borra. O amor é uma dor cruel que tudo devora. Às vezes rasga o véu da alma, às vezes puxa-o. Um átomo de amor é preferível a quanto existe entre os horizontes, um átomo da sua dor é melhor do que o amor feliz de todos os amantes. O amor é a própria medula dos seres; mas não pode haver amor verdadeiro sem verdadeiro sofrimento. Quem quer que esteja bem alicerçado no amor renuncia à fé, à religião, à descrença. O amor abrirá a porta da pobreza espiritual, e a pobreza mostrará o caminho da descrença. Quando não subsistirem nem a descrença nem a religião, vosso corpo e vossa alma desaparecerão, e sereis então dignos dos mistérios — esta é a única maneira de sondá-los, se o quiserdes.

“Avançai, pois, sem medo. Abandonai as coisas infantis e, acima de tudo, tende coragem; pois uma centena de vicissitudes vos salteará de surpresa.”

Fim de página

Página seguinte: (continuação) A história do xeque San’An

1 comentário:

  1. Olá!! ;)

    Estou a gostar muito desta Conferência de "pássaros humanizados" rsrs ;)

    Estou também a ler os posts do teu blog, que estão muito bons.

    Namastê.

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