A conferência dos pássaros - Farid Ud-Din Attar
Continuação: A história do xeque San’An
O xeque San’an era no seu tempo um santo homem que se aperfeiçoara em alto grau. Durante cinquenta anos permanecera em seu retiro, em companhia de quatrocentos discípulos, que trabalhavam dia e noite o próprio espírito.
Seus grandes conhecimentos eram beneficiados pela revelação exterior e interior. Levara grande parte da vida realizando peregrinações a Meca. Eram sem número suas orações e jejuns, e ele não omitia uma prática sequer dos sunitas. Levava a cabo milagres e, com o hálito, curava doentes e deprimidos.
Uma noite sonhou que fora de Meca à Grécia, onde adorara um ídolo; e, acordando, pesaroso, do sonho opressivo, comunicou aos discípulos:
“Preciso partir imediatamente para a Grécia a fim de descobrir o significado desse sonho”.
Deixou a Caaba em companhia dos quatrocentos discípulos e, afinal, chegaram à Grécia. Percorreram o país de um extremo a outro e, um belo dia, entraram num lugar em que viram uma moça sentada num balcão. A moça era cristã, e a expressão de seu rosto mostrava que ela possuía a faculdade de ponderar nas coisas de Deus. Sua beleza era como o sol no auge do esplendor, e sua dignidade a fazia parecida com os signos do Zodíaco. Invejosa da sua radiância, a estrela-d’alva se demorava acima de sua casa. Quem quer que prendesse o coração nos fios de seus cabelos cingia o cinto de cristão; e aquele cujo desejo pousava no rubi dos seus lábios perdia a cabeça. A lua assumia um tom mais escuro à custa do negrume de suas melenas, a terra da Grécia se arrugava em razão da beleza das suas sardas. Seus olhos eram uma cilada para os amantes; suas sobrancelhas arqueadas formavam foices melindrosas sobre luas gêmeas. Quando o poder lhe alumiava as pupilas dos olhos, cem corações se tornavam presa sua. Brilhava-lhe o rosto qual chama viva, e os úmidos rubis de seus lábios seriam capazes de deixar com sede o mundo inteiro. Seus cílios langorosos lembravam uma centena de adagas, e sua boca era tão pequena que nem as palavras conseguiam passar por ela. Sua cintura, esguia como um fio de cabelo, vivia apertada pelo zunnar; e a covinha de prata de seu queixo vivificava tanto quanto os sermões de Jesus.
Quando ela erguia um cantinho do véu, incendiava-se o coração do xeque; e um só fio dos seus cabelos atava-lhe o lombo com cem zunnars. Ele não conseguia despregar a vista da moça cristã, e tamanho era o seu amor que a vontade lhe escorregou das mãos. Dos cabelos dela, a descrença espargiu-se-lhe sobre a fé. E ele gritou:
“Oh, como é terrível o amor que sinto por ela! Quando a religião nos desampara, para que presta o coração?”
Quando os companheiros compreenderam o que se passava e viram o estado a que ele ficara reduzido, levaram as mãos à cabeça. Alguns tentaram raciocinar com ele, mas o xeque recusou-se a prestar-lhes atenção. Não fazia outra coisa o dia inteiro senão ficar de pé, com o olhar pregado no balcão e a boca aberta. As estrelas, que brilhavam como lâmpadas, tomavam emprestado o calor daquele santo homem, cujo coração se conflagrara. O seu amor foi crescendo até deixá-lo fora de si.
“Ó Senhor”, orou ele, “tenho jejuado e sofrido na vida, mas nunca sofri como agora; estou em tormento. A noite é tão longa e tão negra quanto os cabelos dela. Onde está a lâmpada do Céu? Tê-la-ão apagado os meus suspiros ou ela se escondeu de inveja? Onde está a minha boa fortuna? Por que não me ajuda a conquistar o amor dessa moça? Onde está a minha razão para que eu possa fazer uso dos meus conhecimentos? Onde estão minhas mãos para me cobrirem de cinzas a cabeça? Onde estão meus pés para levar-me à minha amada, e meus olhos para ver-lhe o rosto? Onde está a minha amada para dar-me o seu coração? Que é este amor, este sofrimento, esta dor?”
Os amigos do xeque foram procurá-lo de novo. Disse um deles:
“Ó digno xeque, ergue-te e afugenta a tentação. Sê senhor de ti e executa as abluções ordenadas”.
“Não sabeis que esta noite fiz uma centena de abluções e todas com o sangue do meu coração?”, replicou ele.
Outro acudiu:
“Onde está o teu terço? Como podes orar sem ele?”
E o xeque respondeu: “Atirei fora o meu terço para poder cingir-me com o zunnar cristão”.
“Ó santo velho, se pecaste, arrepende-te sem demora”, sobreveio outro.
“Arrependo-me agora”, retrucou ele, “de haver seguido a verdadeira lei, e só desejo abrir mão dessa absurdidade.”
“Deixa este lugar e vai adorar a Deus”, insistiu outro.
E ele retrucou:
“Se o meu ídolo estivesse aqui, prosternar-me-ia diante dele”.
E outro: “Queres dizer que não tentarás sequer arrepender-te? Já não és um seguidor do Islam?”
“Ninguém se arrepende mais do que eu de só agora haver-me apaixonado”, replicou o xeque.
E outro ainda: “As regiões infernais estarão à tua espera se teimares em palmilhar este caminho; mas vigia-te e as evitarás”.
“O inferno só está aí por causa dos meus suspiros, que seriam capazes de alimentar sete infernos.”
Vendo que suas palavras não produziam efeito sobre o xeque, se bem o tivessem seguido a noite toda, os amigos se foram. Entrementes, o Turco da Manhã, de sabre e escudo de ouro, cortou a cabeça da Noite Negra, de modo que o mundo da razão se banhou na radiância do Sol. O xeque, joguete do seu amor, vagabundeou com os cachorros e ficou sentado, durante um mês, na rua, à espera de uma ocasião que lhe permitisse ver o rosto dela. O pó era a sua cama, e o degrau da porta da casa da moça cristã, o seu travesseiro.
Vendo, então, que ele estava irremediavelmente apaixonado, a formosa cristã cobriu o rosto com o véu e disse-lhe:
“Ó xeque, como se dá que tu, um asceta, estejas tão bêbedo do vinho do politeísmo e te assentes numa rua cristã nesse estado? Se me adorares desse jeito acabarás ficando louco”.
Ao que o xeque respondeu:
“Isso foi porque me roubaste o coração. Devolve-mo ou aceita o meu amor. Se quiseres, sacrificarei minha vida por ti, mas podes recuperar essa vida com um toque dos teus lábios. Por tua causa meu coração está conflagrado. Derramei lágrimas como chuva, e meus olhos perderam a vista. Onde existia um coração agora só existe sangue. Se eu me unisse a ti recobraria a vida. És o sol, eu sou a sombra. Sou um homem perdido, mas, se te inclinares para mim, tomarei debaixo das asas as sete cúpulas do mundo. Imploro-te, não me deixes!”
“Ó velho tolo!”, contraveio ela. “Não tens vergonha de usar a cânfora por sudário? Deverias corar por sugerir intimidade comigo com o teu hálito frio! Fora melhor que te envolvesses numa mortalha do que perderes tempo comigo. Não podes inspirar amor. Vai-te!”
“Dize o que quiseres, que ainda assim te amo”, voltou o xeque. “Que importa que sejamos moços ou velhos se o amor toca todos os corações?”
“Muito bem”, disse ela, então. “Já que não te deixas convencer, ouve o que te digo. Lava as tuas mãos do Islam; pois o amor que não se identifica com a amada não passa de cor e perfume.”
“Farei quanto quiseres”, conveio ele. “Empreenderei tudo o que ordenares, ó tu, cujo corpo é igual à prata. Sou teu escravo. Enrola um anel dos teus cabelos no meu pescoço para lembrar-me da minha escravidão.”
“Se és homem de ação”, tornou a jovem cristã, “terás de fazer quatro coisas: prostrar-te diante dos ídolos, queimar o Corão, beber vinho e fechar os olhos para a tua religião.”
Ele respondeu:
“Beberei vinho em homenagem à tua beleza, mas não posso cumprir as outras três exigências”.
“Muito bem”, assentiu ela, “vem beber vinho comigo, que dentro em pouco aceitarás as outras condições.”
E conduziu-o a um templo de magos, onde se lhe deparou estranhíssimo ajuntamento. Sentaram-se à mesa de um banquete, a que a convidaram por sua beleza. Ela estendeu-lhe uma taça de vinho, e quando ele pegou na taça e olhou para os risonhos rubis dos lábios dela, como duas tampas de um escrínio, o fogo ardeu-lhe no coração e uma torrente de sangue afluiu-lhe aos olhos. Tentou lembrar-se dos livros sagrados que lera e escrevera sobre religião, e do Corão, que tão bem conhecia; mas quando o vinho lhe passou da taça para o estômago, esqueceu-os todos; desvaneceu-se-lhe o saber espiritual. Perdeu o livre-arbítrio e deixou o coração cair-lhe das mãos. E quando tentou pôr a mão no pescoço dela, a moça refugou-o:
“Apenas finges amar. Não compreendes o mistério do amor. Se estiveres seguro do teu amor encontrarás o caminho das minhas madeixas. Perde-te na descrença com a ajuda dos meus cabelos; segue-lhes as mechas e poderás pôr a mão no meu pescoço. Mas se não quiseres seguir o meu caminho, levanta-te e vai; e leva a tua capa e o teu cajado de faquir”.
Ouvindo isso, o amoroso xeque sentiu-se desalentado; e cedeu, sem mais cerimônias, ao seu destino. O vinho que bebera tornara-lhe a cabeça tão variável quanto uma bússola. O vinho era velho e o seu amor era jovem. Em que outra coisa poderia ele ter-se transformado senão num bêbedo apaixonado?
“Ó Esplendor da Lua”, exclamou, “dize-me o que desejas. Se eu não era um alcoólatra antes de perder o juízo, agora que estou embriagado queimarei o Corão diante do ídolo.”
Disse a jovem beldade:
“Agora, sim! Agora és verdadeiramente o meu homem.
És digno de mim. Até este momento eras cru no amor, mas a experiência cozeu-te. Ótimo!”
Quando os cristãos ouviram dizer que o xeque abraçara sua crença, levaram-no, ainda ébrio, à igreja e disseram-lhe que amarrasse um zunnar à cintura. Ele obedeceu, lançou ao fogo o manto de dervixe, abdicou da fé e entregou-se às práticas da religião cristã.
E disse à moça:
“Ó dama encantadora, ninguém jamais fez tanto por uma mulher quanto eu. Adorei os teus ídolos, bebi vinho e renunciei à verdadeira fé. Tudo isso fiz por amor de ti e para poder possuir-te”.
E ela respondeu-lhe:
“Velho bobo, escravo do amor, como pode uma mulher como eu unir-se a um faquir? Preciso de prata e ouro, e, visto que não tens nada disso, vai-te embora”.
“Ó mulher adorável,” retrucou o xeque, “teu corpo é um cipreste e teus seios são prata. Se me repelires, levar-me-ás ao desespero. A idéia de possuir-te alvoroçou-me. Por tua causa meus amigos se tornaram meus inimigos. Como o és, assim o são eles; que farei? Ó minha amada, eu quisera antes estar no inferno contigo do que no céu sem ti.”
Por fim, ela se abrandou e acabou aceitando o xeque como seu homem, começando também a sentir a chama do amor. Mas, para pô-lo um pouco mais à prova, disse-lhe:
“Agora, por meu dote, ó homem imperfeito, vai guardar meus porcos pelo espaço de um ano; depois disso, passaremos juntos a vida inteira, na alegria ou na tristeza!”
Sem um protesto, o xeque da Caaba, o santo, concordou em transformar-se em porqueiro.
Na natureza de cada um de nós há uma centena de porcos. Ó vós, que sois não-entidades, estais pensando apenas no perigo que corria o xeque! O perigo se encontra em cada um de nós e ergue a cabeça a partir do momento que enveredamos pelo caminho do conhecimento de nós mesmos. Se não conhecerdes vossos próprios porcos não conhecereis o Caminho. Mas se de fato vos puserdes a campo, encontrareis um milhar de porcos — um milhar de ídolos. Enxotai os porcos, queimai os ídolos na planície do amor; pois, do contrário, ficareis como ficou o xeque, desonrado pelo amor. Pois bem, quando correu a voz de que o xeque se fizera cristão, todos os seus companheiros, tomados de profunda angústia, se afastaram; todos, menos um, que lhe disse: “Conta-nos o segredo dessa história para que possamos nos tornar cristãos contigo. Não queremos que só tu cometas apostasia, de modo que também nos cingiremos com o zunnar cristão. Se não concordares, retornaremos à Caaba e passaremos o tempo imersos em orações a fim de não vermos o que vemos agora”.
Disse o xeque:
“Minha alma está cheia de tristeza. Vai para onde te levarem os teus desejos. Quanto a mim, a igreja é o meu lugar, e a moça cristã, o meu destino. Sabes por que és livre? Porque não estás na minha posição. Se estivesses, eu teria um companheiro no meu desditoso amor. Regressa, pois, querido amigo, à Caaba, que ninguém pode participar do meu estado atual. Se perguntarem por mim, responde: ‘Seus olhos estão cheios de sangue, sua boca, cheia de veneno. Ele continua preso nas fauces dos dragões da violência. Nenhum infiel consentiria em fazer o que fez esse orgulhoso muçulmano por efeito do destino. Uma jovem cristã prendeu-lhe o pescoço num anel dos seus cabelos’. Se me censurarem, dize-lhes que muitos caem no meio da estrada, que não tem começo nem fim, mas alguns, mais afortunados, se refazem da queda e do perigo”.
Dito isso, desviou o rosto do amigo e voltou à vara de porcos.
Seus seguidores, que o observavam à distância, choraram amarguradamente. Por fim, puseram-se a caminho, de volta à Caaba, e, corridos de vergonha e confusão, foram esconder-se num canto.
Ora, estava na Caaba, naquela ocasião, um amigo do xeque, que era vidente e trilhava o caminho verdadeiro. Ninguém o conhecia melhor do que ele, se bem não o tivesse acompanhado à Grécia. Quando esse homem pediu notícias do amigo, os discípulos lhe contaram tudo o que acontecera ao xeque e perguntaram-lhe que feio galho de árvores traspassara o peito dele, e se aquilo sucedera por vontade do destino. Contaram, mais, que uma jovem infiel o amarrara com um único fio de cabelo e lhe fechara os cem caminhos do Islam.
“Ele brinca com suas madeixas e suas sardas”, acrescentaram, “e queimou a própria khirka. Abandonou a religião, e agora, com um zunnar à cintura, apascenta uma aduada de porcos. Mas, conquanto tenha empenhado a própria alma, quer-nos parecer que ainda há esperança.”
Ouvindo isso, o rosto do discípulo fez-se cor de ouro e ele entrou a lamentar-se, atribulado. Depois disse:
“Companheiros de infortúnio, em religião não há homem nem mulher. Quando um amigo infeliz precisa de auxílio, sucede muita vez que só uma pessoa em mil pode ser-lhe de alguma utilidade”.
Em seguida, censurou-os por haverem abandonado o xeque, dizendo que até deviam ter-se feito cristãos por amor a ele. E ajuntou:
“O amigo deve continuar amigo. É no infortúnio que descobrimos em quem podemos confiar; pois na prosperidade tereis um milhar de amigos. Agora que o xeque caiu na goela do crocodilo, todos se afastam dele, ciosos da própria reputação. Se o evitardes à conta desse estranho sucesso, sereis julgados e condenados”.
“Nós nos oferecemos para ficar ao seu lado”, responderam os outros, “e até concordamos em tornar-nos idólatras. Mas como ele é um homem experimentado e sábio, e temos nele absoluta confiança, quando nos aconselhou a voltar, voltamos para cá.”
O discípulo fiel replicou:
“Se realmente desejais agir, precisais bater à porta de Deus; a seguir, pela oração, sereis admitidos à sua presença. Devíeis estar pedindo a Deus pelo vosso xeque, cada qual recitando uma prece diferente; e Deus, vendo o vosso estado de confusão, tê-lo-ia devolvido a vós. Por que vos abstivestes de bater à porta de Deus?”
Ouvindo-o, os outros tiveram vergonha de erguer a cabeça. Mas ele insistiu:
“Esta não é a hora de lamentações. Vamos agora ao tribunal de Deus. Deitemo-nos no pó e cubramo-nos com as vestes da súplica a fim de podermos recuperar o nosso chefe!”
Partiram os discípulos sem demora para a Grécia e, ali chegados, ficaram perto do xeque. Rezaram quarenta dias e quarenta noites, não comeram nem dormiram; não provaram pão nem água. Afinal, a força das rezas desses homens sinceros fez-se ouvir no Céu. Anjos, arcanjos e todos os santos vestidos de verde nas alturas e nos vales envergaram, então, as vestes do luto. A seta da oração atingiu o alvo. Ao despontar da manhã, um zéfiro almiscarado pôs-se a soprar suavemente sobre o discípulo fiel, que orava em sua cela, e o mundo desvelou-se-lhe ao espírito. Viu o profeta Maomé aproximando-se, radioso como a lua, com duas madeixas de cabelo a cair-lhe sobre o peito; a sombra de Deus era o sal do seu semblante, o desejo de uma centena de mundos estava preso a cada um dos seus fios de cabelo. A graça do sorriso atraía todos os homens para ele. Ergueu-se o discípulo e disse:
“Ó mensageiro de Deus, guia de todas as criaturas, ajuda-me! O nosso xeque desencaminhou-se. Mostra-lhe o caminho, imploro-te, em nome do Altíssimo!”
Replicou Maomé:
“Ó tu, que vês coisas com o olho interior, graças aos esforços que envidaste, teus desejos puros serão atendidos. Entre o xeque e Deus houve, por muito tempo, um ponto negro; mas fiz jorrar o orvalho da súplica e espalhei-o sobre o pó da sua existência. Ele se arrependeu, e o seu pecado foi lavado. As faltas de uma centena de mundos desaparecem no vapor de um instante de arrependimento. Quando o oceano da boa vontade se movimenta, suas ondas lavam os pecados de homens e mulheres”.
O discípulo soltou um grito que comoveu todo o céu. Correu para transmitir aos companheiros a boa nova e, logo, chorando de alegria, endereçou-se ao lugar onde o xeque guardava os seus porcos. Mas o xeque se diria um fogo, um iluminado. Lançara de si o cinto cristão, arrancara da cabeça o gorro da embriaguez e renunciara ao cristianismo. Via-se tal qual era, e, derramando lágrimas de remorso, ergueu as mãos para o céu; tudo o que abandonara — o Corão, os mistérios e profecias — voltaram-lhe, e ele se libertou da sua miséria e da sua loucura.
Disseram-lhe os discípulos:
“Esta é a hora da gratidão e do agradecimento. O Profeta intercedeu por ti. Graças a Deus, ele te ergueu de um oceano de piche e colocou-te os pés no caminho do Sol”.
Nisso, o xeque tornou a vestir a khirka, fez suas abluções e pôs-se a caminho do Hejaz.
Enquanto tudo isso acontecia, a moça cristã viu em sonhos o sol descendo até ela, e ouviu estas palavras:
“Segue o teu xeque, abraça-lhe a fé, sê o seu pó. Tu, que estás maculada, sê pura como ele é agora. Tu o conduziste ao teu caminho, entra agora no dele”.
Assim que ela acordou, fez-se luz no seu espírito; ansiava por encetar a jornada. A mão segurou o coração, e o coração caiu-lhe da mão. Mas, quando compreendeu que estava só e não tinha a menor idéia do caminho, a alegria mudou-se-lhe em pranto, e ela saiu correndo para atirar cinzas sobre a cabeça. Em seguida, saiu à procura do xeque e dos amigos dele; mas, cansada e angustiada, coberta de suor, deixou-se cair ao chão e gritou:
“Possa Deus, o Criador, perdoar-me! Sou uma mulher desgostosa da vida. Não me firas, pois eu te feri por ignorância, e por ignorância cometi muitos erros. Esquece o mal que te fiz. Aceito a verdadeira fé”.
Uma voz interior informou disso o xeque. Ele se deteve no meio da caminhada e disse:
“Aquela moça já não é uma infiel. A luz a visitou, e ela entrou em nosso Caminho. Voltemos. Podemos agora manter-nos intimamente ligados ao nosso ídolo sem pecado”.
Os companheiros, porém, objetaram-lhe:
“Mas, então, para que todo o teu arrependimento e remorso? Queres voltar para o teu amor?”
Ele falou-lhes da voz que ouvira e recordou-lhes que renunciara aos seus caminhos anteriores. Por isso retrocederam até chegar ao sítio em que jazia a moça. O rosto lhe assumira a cor do ouro amarelo, os pés estavam descalços, as vestes rasgadas. Quando o xeque se inclinou sobre ela, a moça desmaiou. Ao tornar a si, as lágrimas lhe saltaram dos olhos como o orvalho das rosas, e ela disse:
“A vergonha me consome por tua causa. Ergue o véu do segredo e instruí-me no Islam para que eu possa palmilhar o Caminho.”
Quando o formoso ídolo se achou finalmente entre os fiéis, os companheiros derramaram lágrimas de júbilo.
“Ó xeque”, disse ela, “já não tenho forças. Quero deixar este mundo poeirento e ensurdecedor. Adeus, xeque San’an. Confesso meus erros. Perdoa-me e deixa-me ir.”
Assim, aquela lua de beleza, que não vivera mais do que a metade de uma vida, escapou de sua mão. O sol escondeu-se atrás das “nuvens enquanto a sua alma gentil se separava do corpo. Ela, uma gota no oceano da ilusão, regressara ao verdadeiro oceano.
Todos partimos como o vento; ela se foi, e nós também nos iremos. Essas coisas ocorrem amiúde no caminho do amor. Há desespero e misericórdia, ilusão e segurança. Conquanto o corpo de desejo não compreenda os segredos, a adversidade não pode atirar longe a bola de pólo da boa fortuna. Precisamos ouvir com o ouvido da mente e do coração, e não com o do corpo. A luta do espírito com o corpo de desejo não tem fim. Lamenta! Pois há motivos para chorar.
Os pássaros discutem a proposta para chegar ao Simurgh
Depois de refletirem na história do xeque San’an, decidiram os pássaros renunciar a todo o seu modo de vida anterior. A idéia do Simurgh arrancou-os da apatia; só o amor dele lhes enchia os corações. Começaram a pensar em como iniciar a viagem. Disseram:
“Primeiro, precisamos de um guia para fazer e desfazer os nós. Precisamos de um chefe que nos diga o que fazer, que nos salve deste mar profundo. Obedecer-lhe-emos de todo o coração e faremos o que ele disser, seja agradável, seja desagradável, de modo que a nossa bola caia sobre o malho do Cáucaso. O átomo, então, se unirá ao sol majestoso; e a sombra do Simurgh cairá sobre nós. Agora, pois, tiremos a sorte para saber quem será o chefe. Aquele sobre o qual recair a sorte será nosso guia; será grande entre os pequenos”.
Seguiu-se a isso verdadeira comoção, em que todos falavam ao mesmo tempo, mas, quando tudo ficou pronto, a excitação e os chilros sumiram e os pássaros se calaram. O sorteio foi dirigido com a devida cerimônia e, finalmente, a sorte manifestou-se em favor da animosa Poupa. Todos concordaram e prometeram obedecer-lhe, com o risco da própria vida, jurando não poupar a alma nem o corpo. A Poupa adiantou-se e cingiram-lhe a cabeça com uma coroa.
No sítio indicado para a partida, eram tantos os pássaros reunidos que ocultavam a lua e o peixe; mas, quando viram a entrada do primeiro vale, ergueram-se, assustados, até as nuvens. Depois, com muito adejar de asas e penas e muito encorajamento recíproco, retomou-os a ânsia de desistir de tudo. Pois a tarefa que tinham pela frente era pesada e o percurso, assaz comprido. O silêncio pairava, próximo, sobre o caminho que se estendia diante deles, e um pássaro perguntou à Poupa por que a estrada estava tão deserta.
“Por causa do temor que inspira o rei a cuja morada ela conduz”, explicou a interpelada.
Anedota de Bayazid Bistami
Uma noite, ao sair da cidade, o xeque Bayazid reparou que um profundo silêncio se estendia sobre a planície. A lua alumiava o mundo, tornando a noite tão clara quanto o dia. As estrelas agrupavam-se de acordo com suas simpatias, e cada constelação tinha uma função especial. O xeque caminhava sem perceber nenhum movimento e sem avistar vivalma. Com o coração abalado, disse:
“Senhor, uma tristeza penetrante me oprime. Por que uma corte tão sublime carece de adoradores ardentes?”
“Não te surpreendas”, respondeu-lhe uma voz interior, “o rei não admite toda a gente à sua corte. A dignidade não lhe permite receber vagabundos à sua porta. Quando o santuário do nosso esplendor fulgura, ele desdenha os dorminhocos e desatentos. És um dos mil que anseiam por admissão, e precisas aguardar com paciência.”
Os pássaros começam a jornada
O medo e a apreensão arrancaram gritos plangentes dos pássaros quando se viram diante de uma estrada sem fim, onde o vento forte do alheamento das coisas terrenas rachou a abóbada do céu. Na sua ansiedade, juntaram-se e foram pedir conselho à Poupa. Disseram:
“Não sabemos como teremos de apresentar-nos ao rei com o devido respeito. Mas tu estiveste em presença de Salomão e conheces os primores da etiqueta. Também subiste e desceste esta estrada e voaste muitas vezes ao redor da terra. És o nosso imã para o que der e vier. Pedimos-te, portanto, que vás ao minabar e nos instruas. Fala-nos da estrada e da corte do rei, e das cerimônias que ali se realizam, porque não desejamos fazer má figura. Além disso, todo tipo de dificuldade nos conturba a mente, e, para essa jornada, é mister que estejamos livres de preocupações. Temos muitas perguntas a fazer e desejamos que nos dissipes as apreensões, pois de outro modo não conseguiremos enxergar claro nesta longa estrada”.
A Poupa colocou a coroa na cabeça, sentou-se no trono e dispôs-se a falar-lhes. Quando o exército de pássaros se enfileirou diante dela, o Rouxinol e a Rolinha subiram ao sólio e, como dois leitores com a mesma voz, desferiram um canto tão doce que todos os que o ouviram se sentiram elevados para fora de si mesmos. Ato contínuo, um depois do outro, diversos pássaros subiram até ela para expor suas dificuldades e desculpar-se.
O discurso do primeiro pássaro
O primeiro pássaro disse à Poupa:
“Ó tu, que foste escolhida para nosso chefe, dize-nos o que faz com que te destaques entre nós. Já que pareces ser como nós, e nós como tu, onde reside a diferença? Que pecados do corpo ou da alma cometemos para sermos ignorantes, ao passo que tu tens entendimento?”
A Poupa replicou:
“Sabe, ó pássaro, que Salomão, certa vez, me viu por acaso; e que minha boa fortuna não resultou do ouro nem da prata, senão desse encontro feliz. Como há de uma criatura tirar proveito apenas da obediência? O próprio Iblis obedece. Sem embargo disso, se alguém aconselhar a rejeição da obediência, será maldito para sempre. Pratica a obediência e lograrás um vislumbre do verdadeiro Salomão”.
Mahmud e o pescador
O sultão Mahmud, certa vez, separado do seu exército, galopava sozinho com o vento. Não demorou muito e viu um menininho sentado à beira de um rio, no qual lançara a sua rede. O sultão abeirou-se dele e, vendo-o triste e deprimido, perguntou-lhe:
“Querida criança, que é que te faz tão triste? Nunca vi ninguém tão sorumbático”.
“Ó ilustre príncipe”, replicou o menino, “somos sete ao todo; não temos pai, e nossa mãe é muito pobre. Todo dia venho aqui e tento pegar uns peixes para o jantar. Só quando consigo pescar alguns é que fazemos uma refeição noturna.”
“Não queres que eu faça uma tentativa?”, perguntou o sultão. E como o menino consentisse, atirou a rede, a qual, compartindo da proverbial boa sorte do sultão, em pouco tempo apanhou cem peixes. Diante disso, falou o menino consigo: “Minha boa fortuna é espantosa. Que sorte que todos esses peixes tenham vindo cair na minha rede!”
Atalhou, contudo, o sultão:
“Não te iludas, meu filho. Sou eu a causa da tua boa sorte. Foi o sultão quem pegou esses peixes para ti”.
Dizendo isso, montou a cavalo. O menino rogou-lhe que levasse a sua parte, mas o sultão não aceitou a oferta, dizendo que ficaria com a pesca do dia seguinte.
“Amanhã pescarás para mim”, disse ele.
E retornou ao palácio. No dia seguinte, mandou um dos seus oficiais buscar o menino. Quando eles chegaram, fez o menino sentar-se no trono, ao seu lado.
“Senhor”, acudiu um dos cortesãos, “esse menino é um mendigo!”
“Não te preocupes”, redarguiu o sultão, “ele agora é meu companheiro. E, visto que somos parceiros, não posso mandá-lo embora.”
Assim sendo, o sultão tratou-o como a um igual. Por fim, alguém perguntou ao menino:
“Como foi que vieste a lograr tamanha distinção?”
E o menino respondeu:
“A alegria chegou e a tristeza se foi, porque encontrei um monarca afortunado”.
Mahmud e o lenhador
De outra feita, quando cavalgava sozinho, o sultão Mahmud encontrou um velho lenhador que conduzia um burro carregado de espinheiros. A um dado momento, o animal tropeçou e, quando caiu, os espinhos feriram a cabeça do velho. Ao ver os espinheiros no chão, o burro de pernas para o ar e o homem esfregando a cabeça, o sultão perguntou:
“Ó infeliz, estás necessitando de um amigo?”
“Estou sim”, replicou o lenhador. “Bondoso cavaleiro, se quiseres ajudar-me, ainda colherei meus lucros, e, a ti, nenhum mal te advirá disso. Teu semblante é um bom presságio para mim.”
O bondoso sultão apeou do cavalo e, tendo puxado o burro para obrigá-lo a levantar-se, ergueu o feixe de espinheiros e amarrou-o ao lombo do animal. Em seguida, retornou, a cavalo, para onde estava o exército. E disse aos soldados:
“Um velho lenhador está vindo para cá com um burro carregado de espinheiros. Barrai-lhe o caminho para que ele tenha de passar diante de mim”.
Ao aproximar-se dos soldados, disse o lenhador para si: “Como passarei por eles com este frágil animal?” Entrou, assim, por outro caminho, mas, avistando o pára-sol real à distância, pôs-se a tremer: a estrada que se vira forçado a tomar o levaria a passar bem defronte do sultão. Ao aproximar-se um pouco mais, sua confusão aumentou, pois avistou debaixo do pára-sol um rosto familiar.
“Ó Deus”, exclamou, “em que situação me vejo! Hoje tive Muhmud por carregador!”
Quando o homem chegou à sua frente, o sultão Mahmud perguntou-lhe:
“Meu pobre amigo, que fazes para viver?”
Ao que o lenhador replicou:
“Já o sabeis. Sede sincero. Não me reconheceis? Sou um pobre velho, lenhador de profissão; dia e noite ajunto espinheiros no ermo e vendo-os, mas o meu burro está morrendo de fome. Se me quereis bem, dai-me um pouco de pão”.
“Pobre homem”, volveu o sultão, “quanto queres pelo teu feixe?”
“Visto que não quereis recebê-lo de graça e não desejo vendê-lo, dai-me uma bolsa de ouro.”
Ouvindo isso, os soldados gritaram:
“Dobra a língua, insensato! O teu feixe não vale sequer um punhado de cevada. Devias dá-lo por nada”.
O velho retorquiu:
“Está tudo muito bem, mas o seu valor agora se alterou. Quando um homem de sorte como o sultão põe as mãos no meu feixe de espinheiros, estes se transformam em rosas. Se quiser comprá-los, ele terá de pagar, no mínimo, um dinar, pois, ao tocá-los, aumentou cem vezes o valor dos meus espinheiros”.
O discurso do segundo pássaro
Outro pássaro, avizinhando-se da Poupa, disse:
“Ó protetora do exército de Salomão! Faltam-me forças para empreender esta jornada. Estou fraco demais para cruzar os vales. A estrada é tão difícil que me deitarei para morrer no primeiro pouso. Há vulcões pelo caminho. Além disso, não convém a todos empenharem-se numa empresa dessa natureza. Milhares de cabeças rolaram como rolam as bolas no pólo, pois muitos que partiram em demanda do Simurgh pereceram. Numa estrada como esta, onde inúmeras criaturas sinceras esconderam a cabeça com medo, que será de mim, que sou apenas pó?”
A Poupa respondeu:
“Ó tu, que tens o semblante pesaroso! Por que está tão oprimido o teu coração? Visto que tens tão escasso valor para o mundo, tanto faz que sejas jovem e valente ou velho e fraco. O mundo, de fato, é excremento; ali perecem criaturas diante de cada porta. Milhares ficam amarelas como a seda e morrem entre lágrimas de aflição. É melhor perderes a vida numa busca do que languesceres miseravelmente. Se não formos bem sucedidos e morrermos de dor, tanto pior; mas, visto que os erros são numerosos neste mundo, poderemos, pelo menos, evitar a prática de novos. Milhares de criaturas estão manhosamente ocupadas na procura do corpo morto do mundo; assim, se te entregares a esse comércio, sobretudo com astúcia, serás capaz de fazer do teu coração um oceano de amor? Dizem alguns que o desejo das coisas espirituais é presunção e que nenhum mero arrogante pode atingi-las. Mas não será melhor sacrificarmos a vida na busca desse desejo do que nos identificarmos com um negócio? Vi tudo e fiz tudo, e nada abalará minha resolução. Por muito tempo tratei com homens e vi como são poucos os que não estão realmente aferrados às riquezas. Enquanto não morrermos para nós mesmos e não nos identificarmos com alguma coisa ou com alguém, não seremos livres. O caminho espiritual não foi feito para os que estão envoltos na vida exterior. Se fores homem capaz de ação, põe os pés neste caminho e não te entregues a artifícios femininos. Sabe com certeza que, mesmo que a busca fosse ímpia, ainda assim seria necessário empreendê-la. De fato não é fácil; o fruto está sem folhas na árvore do amor. Dize ao que tem folhas que renuncie a elas.
“Quando senhoreia o homem, o amor levanta-lhe o coração, mergulha-o em sangue, arremessa-o, prostrado, para fora da cortina, não lhe dá descanso; mata-o e ainda exige o preço do sangue. Bebe a água das lágrimas e come o pão fermentado com o luto; mas, se for mais fraco do que a formiga, o amor lhe emprestará forças.”
Anedota de um contemplativo
Um louco, um idiota de Deus, andava nu quando outros homens andavam vestidos. E ele pediu:
“Ó Deus, dai-me um belo traje, e ficarei contente como os outros homens”.
Respondeu-lhe uma voz vinda do mundo invisível:
“Dei-te um sol quente; senta-te e deleita-te nele”.
“Por que me castigas?”, volveu o louco. “Uma roupa melhor não seria preferível ao sol?”
Tornou a voz:
“Espera dez dias com paciência, que, logo depois, te darei outra vestimenta”.
O sol crestou-o durante oito dias; findo esse período, apareceu um pobre e deu-lhe uma roupa que tinha um milhar de remendos. O louco disse a Deus:
“Ó vós, que tendes conhecimento das coisas ocultas, por que me destes esta vestimenta remendada? Queimastes, acaso, todas as vossas vestes e precisastes remendar esta velha? Costurastes, um ao outro, um milhar de trajes. Com quem aprendestes tal arte?”
Não é fácil ter tratos com a corte de Deus. O homem precisa tornar-se como o pó da estrada para chegar até lá. Depois de longa luta, imagina ter atingido a meta, quando, na verdade, ainda está longe dela.
***
Próxima página: (continuação) A história de Rabi’ah
Continuação: A história do xeque San’An
O xeque San’an era no seu tempo um santo homem que se aperfeiçoara em alto grau. Durante cinquenta anos permanecera em seu retiro, em companhia de quatrocentos discípulos, que trabalhavam dia e noite o próprio espírito.
Seus grandes conhecimentos eram beneficiados pela revelação exterior e interior. Levara grande parte da vida realizando peregrinações a Meca. Eram sem número suas orações e jejuns, e ele não omitia uma prática sequer dos sunitas. Levava a cabo milagres e, com o hálito, curava doentes e deprimidos.
Uma noite sonhou que fora de Meca à Grécia, onde adorara um ídolo; e, acordando, pesaroso, do sonho opressivo, comunicou aos discípulos:
“Preciso partir imediatamente para a Grécia a fim de descobrir o significado desse sonho”.
Deixou a Caaba em companhia dos quatrocentos discípulos e, afinal, chegaram à Grécia. Percorreram o país de um extremo a outro e, um belo dia, entraram num lugar em que viram uma moça sentada num balcão. A moça era cristã, e a expressão de seu rosto mostrava que ela possuía a faculdade de ponderar nas coisas de Deus. Sua beleza era como o sol no auge do esplendor, e sua dignidade a fazia parecida com os signos do Zodíaco. Invejosa da sua radiância, a estrela-d’alva se demorava acima de sua casa. Quem quer que prendesse o coração nos fios de seus cabelos cingia o cinto de cristão; e aquele cujo desejo pousava no rubi dos seus lábios perdia a cabeça. A lua assumia um tom mais escuro à custa do negrume de suas melenas, a terra da Grécia se arrugava em razão da beleza das suas sardas. Seus olhos eram uma cilada para os amantes; suas sobrancelhas arqueadas formavam foices melindrosas sobre luas gêmeas. Quando o poder lhe alumiava as pupilas dos olhos, cem corações se tornavam presa sua. Brilhava-lhe o rosto qual chama viva, e os úmidos rubis de seus lábios seriam capazes de deixar com sede o mundo inteiro. Seus cílios langorosos lembravam uma centena de adagas, e sua boca era tão pequena que nem as palavras conseguiam passar por ela. Sua cintura, esguia como um fio de cabelo, vivia apertada pelo zunnar; e a covinha de prata de seu queixo vivificava tanto quanto os sermões de Jesus.
Quando ela erguia um cantinho do véu, incendiava-se o coração do xeque; e um só fio dos seus cabelos atava-lhe o lombo com cem zunnars. Ele não conseguia despregar a vista da moça cristã, e tamanho era o seu amor que a vontade lhe escorregou das mãos. Dos cabelos dela, a descrença espargiu-se-lhe sobre a fé. E ele gritou:
“Oh, como é terrível o amor que sinto por ela! Quando a religião nos desampara, para que presta o coração?”
Quando os companheiros compreenderam o que se passava e viram o estado a que ele ficara reduzido, levaram as mãos à cabeça. Alguns tentaram raciocinar com ele, mas o xeque recusou-se a prestar-lhes atenção. Não fazia outra coisa o dia inteiro senão ficar de pé, com o olhar pregado no balcão e a boca aberta. As estrelas, que brilhavam como lâmpadas, tomavam emprestado o calor daquele santo homem, cujo coração se conflagrara. O seu amor foi crescendo até deixá-lo fora de si.
“Ó Senhor”, orou ele, “tenho jejuado e sofrido na vida, mas nunca sofri como agora; estou em tormento. A noite é tão longa e tão negra quanto os cabelos dela. Onde está a lâmpada do Céu? Tê-la-ão apagado os meus suspiros ou ela se escondeu de inveja? Onde está a minha boa fortuna? Por que não me ajuda a conquistar o amor dessa moça? Onde está a minha razão para que eu possa fazer uso dos meus conhecimentos? Onde estão minhas mãos para me cobrirem de cinzas a cabeça? Onde estão meus pés para levar-me à minha amada, e meus olhos para ver-lhe o rosto? Onde está a minha amada para dar-me o seu coração? Que é este amor, este sofrimento, esta dor?”
Os amigos do xeque foram procurá-lo de novo. Disse um deles:
“Ó digno xeque, ergue-te e afugenta a tentação. Sê senhor de ti e executa as abluções ordenadas”.
“Não sabeis que esta noite fiz uma centena de abluções e todas com o sangue do meu coração?”, replicou ele.
Outro acudiu:
“Onde está o teu terço? Como podes orar sem ele?”
E o xeque respondeu: “Atirei fora o meu terço para poder cingir-me com o zunnar cristão”.
“Ó santo velho, se pecaste, arrepende-te sem demora”, sobreveio outro.
“Arrependo-me agora”, retrucou ele, “de haver seguido a verdadeira lei, e só desejo abrir mão dessa absurdidade.”
“Deixa este lugar e vai adorar a Deus”, insistiu outro.
E ele retrucou:
“Se o meu ídolo estivesse aqui, prosternar-me-ia diante dele”.
E outro: “Queres dizer que não tentarás sequer arrepender-te? Já não és um seguidor do Islam?”
“Ninguém se arrepende mais do que eu de só agora haver-me apaixonado”, replicou o xeque.
E outro ainda: “As regiões infernais estarão à tua espera se teimares em palmilhar este caminho; mas vigia-te e as evitarás”.
“O inferno só está aí por causa dos meus suspiros, que seriam capazes de alimentar sete infernos.”
Vendo que suas palavras não produziam efeito sobre o xeque, se bem o tivessem seguido a noite toda, os amigos se foram. Entrementes, o Turco da Manhã, de sabre e escudo de ouro, cortou a cabeça da Noite Negra, de modo que o mundo da razão se banhou na radiância do Sol. O xeque, joguete do seu amor, vagabundeou com os cachorros e ficou sentado, durante um mês, na rua, à espera de uma ocasião que lhe permitisse ver o rosto dela. O pó era a sua cama, e o degrau da porta da casa da moça cristã, o seu travesseiro.
Vendo, então, que ele estava irremediavelmente apaixonado, a formosa cristã cobriu o rosto com o véu e disse-lhe:
“Ó xeque, como se dá que tu, um asceta, estejas tão bêbedo do vinho do politeísmo e te assentes numa rua cristã nesse estado? Se me adorares desse jeito acabarás ficando louco”.
Ao que o xeque respondeu:
“Isso foi porque me roubaste o coração. Devolve-mo ou aceita o meu amor. Se quiseres, sacrificarei minha vida por ti, mas podes recuperar essa vida com um toque dos teus lábios. Por tua causa meu coração está conflagrado. Derramei lágrimas como chuva, e meus olhos perderam a vista. Onde existia um coração agora só existe sangue. Se eu me unisse a ti recobraria a vida. És o sol, eu sou a sombra. Sou um homem perdido, mas, se te inclinares para mim, tomarei debaixo das asas as sete cúpulas do mundo. Imploro-te, não me deixes!”
“Ó velho tolo!”, contraveio ela. “Não tens vergonha de usar a cânfora por sudário? Deverias corar por sugerir intimidade comigo com o teu hálito frio! Fora melhor que te envolvesses numa mortalha do que perderes tempo comigo. Não podes inspirar amor. Vai-te!”
“Dize o que quiseres, que ainda assim te amo”, voltou o xeque. “Que importa que sejamos moços ou velhos se o amor toca todos os corações?”
“Muito bem”, disse ela, então. “Já que não te deixas convencer, ouve o que te digo. Lava as tuas mãos do Islam; pois o amor que não se identifica com a amada não passa de cor e perfume.”
“Farei quanto quiseres”, conveio ele. “Empreenderei tudo o que ordenares, ó tu, cujo corpo é igual à prata. Sou teu escravo. Enrola um anel dos teus cabelos no meu pescoço para lembrar-me da minha escravidão.”
“Se és homem de ação”, tornou a jovem cristã, “terás de fazer quatro coisas: prostrar-te diante dos ídolos, queimar o Corão, beber vinho e fechar os olhos para a tua religião.”
Ele respondeu:
“Beberei vinho em homenagem à tua beleza, mas não posso cumprir as outras três exigências”.
“Muito bem”, assentiu ela, “vem beber vinho comigo, que dentro em pouco aceitarás as outras condições.”
E conduziu-o a um templo de magos, onde se lhe deparou estranhíssimo ajuntamento. Sentaram-se à mesa de um banquete, a que a convidaram por sua beleza. Ela estendeu-lhe uma taça de vinho, e quando ele pegou na taça e olhou para os risonhos rubis dos lábios dela, como duas tampas de um escrínio, o fogo ardeu-lhe no coração e uma torrente de sangue afluiu-lhe aos olhos. Tentou lembrar-se dos livros sagrados que lera e escrevera sobre religião, e do Corão, que tão bem conhecia; mas quando o vinho lhe passou da taça para o estômago, esqueceu-os todos; desvaneceu-se-lhe o saber espiritual. Perdeu o livre-arbítrio e deixou o coração cair-lhe das mãos. E quando tentou pôr a mão no pescoço dela, a moça refugou-o:
“Apenas finges amar. Não compreendes o mistério do amor. Se estiveres seguro do teu amor encontrarás o caminho das minhas madeixas. Perde-te na descrença com a ajuda dos meus cabelos; segue-lhes as mechas e poderás pôr a mão no meu pescoço. Mas se não quiseres seguir o meu caminho, levanta-te e vai; e leva a tua capa e o teu cajado de faquir”.
Ouvindo isso, o amoroso xeque sentiu-se desalentado; e cedeu, sem mais cerimônias, ao seu destino. O vinho que bebera tornara-lhe a cabeça tão variável quanto uma bússola. O vinho era velho e o seu amor era jovem. Em que outra coisa poderia ele ter-se transformado senão num bêbedo apaixonado?
“Ó Esplendor da Lua”, exclamou, “dize-me o que desejas. Se eu não era um alcoólatra antes de perder o juízo, agora que estou embriagado queimarei o Corão diante do ídolo.”
Disse a jovem beldade:
“Agora, sim! Agora és verdadeiramente o meu homem.
És digno de mim. Até este momento eras cru no amor, mas a experiência cozeu-te. Ótimo!”
Quando os cristãos ouviram dizer que o xeque abraçara sua crença, levaram-no, ainda ébrio, à igreja e disseram-lhe que amarrasse um zunnar à cintura. Ele obedeceu, lançou ao fogo o manto de dervixe, abdicou da fé e entregou-se às práticas da religião cristã.
E disse à moça:
“Ó dama encantadora, ninguém jamais fez tanto por uma mulher quanto eu. Adorei os teus ídolos, bebi vinho e renunciei à verdadeira fé. Tudo isso fiz por amor de ti e para poder possuir-te”.
E ela respondeu-lhe:
“Velho bobo, escravo do amor, como pode uma mulher como eu unir-se a um faquir? Preciso de prata e ouro, e, visto que não tens nada disso, vai-te embora”.
“Ó mulher adorável,” retrucou o xeque, “teu corpo é um cipreste e teus seios são prata. Se me repelires, levar-me-ás ao desespero. A idéia de possuir-te alvoroçou-me. Por tua causa meus amigos se tornaram meus inimigos. Como o és, assim o são eles; que farei? Ó minha amada, eu quisera antes estar no inferno contigo do que no céu sem ti.”
Por fim, ela se abrandou e acabou aceitando o xeque como seu homem, começando também a sentir a chama do amor. Mas, para pô-lo um pouco mais à prova, disse-lhe:
“Agora, por meu dote, ó homem imperfeito, vai guardar meus porcos pelo espaço de um ano; depois disso, passaremos juntos a vida inteira, na alegria ou na tristeza!”
Sem um protesto, o xeque da Caaba, o santo, concordou em transformar-se em porqueiro.
Na natureza de cada um de nós há uma centena de porcos. Ó vós, que sois não-entidades, estais pensando apenas no perigo que corria o xeque! O perigo se encontra em cada um de nós e ergue a cabeça a partir do momento que enveredamos pelo caminho do conhecimento de nós mesmos. Se não conhecerdes vossos próprios porcos não conhecereis o Caminho. Mas se de fato vos puserdes a campo, encontrareis um milhar de porcos — um milhar de ídolos. Enxotai os porcos, queimai os ídolos na planície do amor; pois, do contrário, ficareis como ficou o xeque, desonrado pelo amor. Pois bem, quando correu a voz de que o xeque se fizera cristão, todos os seus companheiros, tomados de profunda angústia, se afastaram; todos, menos um, que lhe disse: “Conta-nos o segredo dessa história para que possamos nos tornar cristãos contigo. Não queremos que só tu cometas apostasia, de modo que também nos cingiremos com o zunnar cristão. Se não concordares, retornaremos à Caaba e passaremos o tempo imersos em orações a fim de não vermos o que vemos agora”.
Disse o xeque:
“Minha alma está cheia de tristeza. Vai para onde te levarem os teus desejos. Quanto a mim, a igreja é o meu lugar, e a moça cristã, o meu destino. Sabes por que és livre? Porque não estás na minha posição. Se estivesses, eu teria um companheiro no meu desditoso amor. Regressa, pois, querido amigo, à Caaba, que ninguém pode participar do meu estado atual. Se perguntarem por mim, responde: ‘Seus olhos estão cheios de sangue, sua boca, cheia de veneno. Ele continua preso nas fauces dos dragões da violência. Nenhum infiel consentiria em fazer o que fez esse orgulhoso muçulmano por efeito do destino. Uma jovem cristã prendeu-lhe o pescoço num anel dos seus cabelos’. Se me censurarem, dize-lhes que muitos caem no meio da estrada, que não tem começo nem fim, mas alguns, mais afortunados, se refazem da queda e do perigo”.
Dito isso, desviou o rosto do amigo e voltou à vara de porcos.
Seus seguidores, que o observavam à distância, choraram amarguradamente. Por fim, puseram-se a caminho, de volta à Caaba, e, corridos de vergonha e confusão, foram esconder-se num canto.
Ora, estava na Caaba, naquela ocasião, um amigo do xeque, que era vidente e trilhava o caminho verdadeiro. Ninguém o conhecia melhor do que ele, se bem não o tivesse acompanhado à Grécia. Quando esse homem pediu notícias do amigo, os discípulos lhe contaram tudo o que acontecera ao xeque e perguntaram-lhe que feio galho de árvores traspassara o peito dele, e se aquilo sucedera por vontade do destino. Contaram, mais, que uma jovem infiel o amarrara com um único fio de cabelo e lhe fechara os cem caminhos do Islam.
“Ele brinca com suas madeixas e suas sardas”, acrescentaram, “e queimou a própria khirka. Abandonou a religião, e agora, com um zunnar à cintura, apascenta uma aduada de porcos. Mas, conquanto tenha empenhado a própria alma, quer-nos parecer que ainda há esperança.”
Ouvindo isso, o rosto do discípulo fez-se cor de ouro e ele entrou a lamentar-se, atribulado. Depois disse:
“Companheiros de infortúnio, em religião não há homem nem mulher. Quando um amigo infeliz precisa de auxílio, sucede muita vez que só uma pessoa em mil pode ser-lhe de alguma utilidade”.
Em seguida, censurou-os por haverem abandonado o xeque, dizendo que até deviam ter-se feito cristãos por amor a ele. E ajuntou:
“O amigo deve continuar amigo. É no infortúnio que descobrimos em quem podemos confiar; pois na prosperidade tereis um milhar de amigos. Agora que o xeque caiu na goela do crocodilo, todos se afastam dele, ciosos da própria reputação. Se o evitardes à conta desse estranho sucesso, sereis julgados e condenados”.
“Nós nos oferecemos para ficar ao seu lado”, responderam os outros, “e até concordamos em tornar-nos idólatras. Mas como ele é um homem experimentado e sábio, e temos nele absoluta confiança, quando nos aconselhou a voltar, voltamos para cá.”
O discípulo fiel replicou:
“Se realmente desejais agir, precisais bater à porta de Deus; a seguir, pela oração, sereis admitidos à sua presença. Devíeis estar pedindo a Deus pelo vosso xeque, cada qual recitando uma prece diferente; e Deus, vendo o vosso estado de confusão, tê-lo-ia devolvido a vós. Por que vos abstivestes de bater à porta de Deus?”
Ouvindo-o, os outros tiveram vergonha de erguer a cabeça. Mas ele insistiu:
“Esta não é a hora de lamentações. Vamos agora ao tribunal de Deus. Deitemo-nos no pó e cubramo-nos com as vestes da súplica a fim de podermos recuperar o nosso chefe!”
Partiram os discípulos sem demora para a Grécia e, ali chegados, ficaram perto do xeque. Rezaram quarenta dias e quarenta noites, não comeram nem dormiram; não provaram pão nem água. Afinal, a força das rezas desses homens sinceros fez-se ouvir no Céu. Anjos, arcanjos e todos os santos vestidos de verde nas alturas e nos vales envergaram, então, as vestes do luto. A seta da oração atingiu o alvo. Ao despontar da manhã, um zéfiro almiscarado pôs-se a soprar suavemente sobre o discípulo fiel, que orava em sua cela, e o mundo desvelou-se-lhe ao espírito. Viu o profeta Maomé aproximando-se, radioso como a lua, com duas madeixas de cabelo a cair-lhe sobre o peito; a sombra de Deus era o sal do seu semblante, o desejo de uma centena de mundos estava preso a cada um dos seus fios de cabelo. A graça do sorriso atraía todos os homens para ele. Ergueu-se o discípulo e disse:
“Ó mensageiro de Deus, guia de todas as criaturas, ajuda-me! O nosso xeque desencaminhou-se. Mostra-lhe o caminho, imploro-te, em nome do Altíssimo!”
Replicou Maomé:
“Ó tu, que vês coisas com o olho interior, graças aos esforços que envidaste, teus desejos puros serão atendidos. Entre o xeque e Deus houve, por muito tempo, um ponto negro; mas fiz jorrar o orvalho da súplica e espalhei-o sobre o pó da sua existência. Ele se arrependeu, e o seu pecado foi lavado. As faltas de uma centena de mundos desaparecem no vapor de um instante de arrependimento. Quando o oceano da boa vontade se movimenta, suas ondas lavam os pecados de homens e mulheres”.
O discípulo soltou um grito que comoveu todo o céu. Correu para transmitir aos companheiros a boa nova e, logo, chorando de alegria, endereçou-se ao lugar onde o xeque guardava os seus porcos. Mas o xeque se diria um fogo, um iluminado. Lançara de si o cinto cristão, arrancara da cabeça o gorro da embriaguez e renunciara ao cristianismo. Via-se tal qual era, e, derramando lágrimas de remorso, ergueu as mãos para o céu; tudo o que abandonara — o Corão, os mistérios e profecias — voltaram-lhe, e ele se libertou da sua miséria e da sua loucura.
Disseram-lhe os discípulos:
“Esta é a hora da gratidão e do agradecimento. O Profeta intercedeu por ti. Graças a Deus, ele te ergueu de um oceano de piche e colocou-te os pés no caminho do Sol”.
Nisso, o xeque tornou a vestir a khirka, fez suas abluções e pôs-se a caminho do Hejaz.
Enquanto tudo isso acontecia, a moça cristã viu em sonhos o sol descendo até ela, e ouviu estas palavras:
“Segue o teu xeque, abraça-lhe a fé, sê o seu pó. Tu, que estás maculada, sê pura como ele é agora. Tu o conduziste ao teu caminho, entra agora no dele”.
Assim que ela acordou, fez-se luz no seu espírito; ansiava por encetar a jornada. A mão segurou o coração, e o coração caiu-lhe da mão. Mas, quando compreendeu que estava só e não tinha a menor idéia do caminho, a alegria mudou-se-lhe em pranto, e ela saiu correndo para atirar cinzas sobre a cabeça. Em seguida, saiu à procura do xeque e dos amigos dele; mas, cansada e angustiada, coberta de suor, deixou-se cair ao chão e gritou:
“Possa Deus, o Criador, perdoar-me! Sou uma mulher desgostosa da vida. Não me firas, pois eu te feri por ignorância, e por ignorância cometi muitos erros. Esquece o mal que te fiz. Aceito a verdadeira fé”.
Uma voz interior informou disso o xeque. Ele se deteve no meio da caminhada e disse:
“Aquela moça já não é uma infiel. A luz a visitou, e ela entrou em nosso Caminho. Voltemos. Podemos agora manter-nos intimamente ligados ao nosso ídolo sem pecado”.
Os companheiros, porém, objetaram-lhe:
“Mas, então, para que todo o teu arrependimento e remorso? Queres voltar para o teu amor?”
Ele falou-lhes da voz que ouvira e recordou-lhes que renunciara aos seus caminhos anteriores. Por isso retrocederam até chegar ao sítio em que jazia a moça. O rosto lhe assumira a cor do ouro amarelo, os pés estavam descalços, as vestes rasgadas. Quando o xeque se inclinou sobre ela, a moça desmaiou. Ao tornar a si, as lágrimas lhe saltaram dos olhos como o orvalho das rosas, e ela disse:
“A vergonha me consome por tua causa. Ergue o véu do segredo e instruí-me no Islam para que eu possa palmilhar o Caminho.”
Quando o formoso ídolo se achou finalmente entre os fiéis, os companheiros derramaram lágrimas de júbilo.
“Ó xeque”, disse ela, “já não tenho forças. Quero deixar este mundo poeirento e ensurdecedor. Adeus, xeque San’an. Confesso meus erros. Perdoa-me e deixa-me ir.”
Assim, aquela lua de beleza, que não vivera mais do que a metade de uma vida, escapou de sua mão. O sol escondeu-se atrás das “nuvens enquanto a sua alma gentil se separava do corpo. Ela, uma gota no oceano da ilusão, regressara ao verdadeiro oceano.
Todos partimos como o vento; ela se foi, e nós também nos iremos. Essas coisas ocorrem amiúde no caminho do amor. Há desespero e misericórdia, ilusão e segurança. Conquanto o corpo de desejo não compreenda os segredos, a adversidade não pode atirar longe a bola de pólo da boa fortuna. Precisamos ouvir com o ouvido da mente e do coração, e não com o do corpo. A luta do espírito com o corpo de desejo não tem fim. Lamenta! Pois há motivos para chorar.
Os pássaros discutem a proposta para chegar ao Simurgh
Depois de refletirem na história do xeque San’an, decidiram os pássaros renunciar a todo o seu modo de vida anterior. A idéia do Simurgh arrancou-os da apatia; só o amor dele lhes enchia os corações. Começaram a pensar em como iniciar a viagem. Disseram:
“Primeiro, precisamos de um guia para fazer e desfazer os nós. Precisamos de um chefe que nos diga o que fazer, que nos salve deste mar profundo. Obedecer-lhe-emos de todo o coração e faremos o que ele disser, seja agradável, seja desagradável, de modo que a nossa bola caia sobre o malho do Cáucaso. O átomo, então, se unirá ao sol majestoso; e a sombra do Simurgh cairá sobre nós. Agora, pois, tiremos a sorte para saber quem será o chefe. Aquele sobre o qual recair a sorte será nosso guia; será grande entre os pequenos”.
Seguiu-se a isso verdadeira comoção, em que todos falavam ao mesmo tempo, mas, quando tudo ficou pronto, a excitação e os chilros sumiram e os pássaros se calaram. O sorteio foi dirigido com a devida cerimônia e, finalmente, a sorte manifestou-se em favor da animosa Poupa. Todos concordaram e prometeram obedecer-lhe, com o risco da própria vida, jurando não poupar a alma nem o corpo. A Poupa adiantou-se e cingiram-lhe a cabeça com uma coroa.
No sítio indicado para a partida, eram tantos os pássaros reunidos que ocultavam a lua e o peixe; mas, quando viram a entrada do primeiro vale, ergueram-se, assustados, até as nuvens. Depois, com muito adejar de asas e penas e muito encorajamento recíproco, retomou-os a ânsia de desistir de tudo. Pois a tarefa que tinham pela frente era pesada e o percurso, assaz comprido. O silêncio pairava, próximo, sobre o caminho que se estendia diante deles, e um pássaro perguntou à Poupa por que a estrada estava tão deserta.
“Por causa do temor que inspira o rei a cuja morada ela conduz”, explicou a interpelada.
Anedota de Bayazid Bistami
Uma noite, ao sair da cidade, o xeque Bayazid reparou que um profundo silêncio se estendia sobre a planície. A lua alumiava o mundo, tornando a noite tão clara quanto o dia. As estrelas agrupavam-se de acordo com suas simpatias, e cada constelação tinha uma função especial. O xeque caminhava sem perceber nenhum movimento e sem avistar vivalma. Com o coração abalado, disse:
“Senhor, uma tristeza penetrante me oprime. Por que uma corte tão sublime carece de adoradores ardentes?”
“Não te surpreendas”, respondeu-lhe uma voz interior, “o rei não admite toda a gente à sua corte. A dignidade não lhe permite receber vagabundos à sua porta. Quando o santuário do nosso esplendor fulgura, ele desdenha os dorminhocos e desatentos. És um dos mil que anseiam por admissão, e precisas aguardar com paciência.”
Os pássaros começam a jornada
O medo e a apreensão arrancaram gritos plangentes dos pássaros quando se viram diante de uma estrada sem fim, onde o vento forte do alheamento das coisas terrenas rachou a abóbada do céu. Na sua ansiedade, juntaram-se e foram pedir conselho à Poupa. Disseram:
“Não sabemos como teremos de apresentar-nos ao rei com o devido respeito. Mas tu estiveste em presença de Salomão e conheces os primores da etiqueta. Também subiste e desceste esta estrada e voaste muitas vezes ao redor da terra. És o nosso imã para o que der e vier. Pedimos-te, portanto, que vás ao minabar e nos instruas. Fala-nos da estrada e da corte do rei, e das cerimônias que ali se realizam, porque não desejamos fazer má figura. Além disso, todo tipo de dificuldade nos conturba a mente, e, para essa jornada, é mister que estejamos livres de preocupações. Temos muitas perguntas a fazer e desejamos que nos dissipes as apreensões, pois de outro modo não conseguiremos enxergar claro nesta longa estrada”.
A Poupa colocou a coroa na cabeça, sentou-se no trono e dispôs-se a falar-lhes. Quando o exército de pássaros se enfileirou diante dela, o Rouxinol e a Rolinha subiram ao sólio e, como dois leitores com a mesma voz, desferiram um canto tão doce que todos os que o ouviram se sentiram elevados para fora de si mesmos. Ato contínuo, um depois do outro, diversos pássaros subiram até ela para expor suas dificuldades e desculpar-se.
O discurso do primeiro pássaro
O primeiro pássaro disse à Poupa:
“Ó tu, que foste escolhida para nosso chefe, dize-nos o que faz com que te destaques entre nós. Já que pareces ser como nós, e nós como tu, onde reside a diferença? Que pecados do corpo ou da alma cometemos para sermos ignorantes, ao passo que tu tens entendimento?”
A Poupa replicou:
“Sabe, ó pássaro, que Salomão, certa vez, me viu por acaso; e que minha boa fortuna não resultou do ouro nem da prata, senão desse encontro feliz. Como há de uma criatura tirar proveito apenas da obediência? O próprio Iblis obedece. Sem embargo disso, se alguém aconselhar a rejeição da obediência, será maldito para sempre. Pratica a obediência e lograrás um vislumbre do verdadeiro Salomão”.
Mahmud e o pescador
O sultão Mahmud, certa vez, separado do seu exército, galopava sozinho com o vento. Não demorou muito e viu um menininho sentado à beira de um rio, no qual lançara a sua rede. O sultão abeirou-se dele e, vendo-o triste e deprimido, perguntou-lhe:
“Querida criança, que é que te faz tão triste? Nunca vi ninguém tão sorumbático”.
“Ó ilustre príncipe”, replicou o menino, “somos sete ao todo; não temos pai, e nossa mãe é muito pobre. Todo dia venho aqui e tento pegar uns peixes para o jantar. Só quando consigo pescar alguns é que fazemos uma refeição noturna.”
“Não queres que eu faça uma tentativa?”, perguntou o sultão. E como o menino consentisse, atirou a rede, a qual, compartindo da proverbial boa sorte do sultão, em pouco tempo apanhou cem peixes. Diante disso, falou o menino consigo: “Minha boa fortuna é espantosa. Que sorte que todos esses peixes tenham vindo cair na minha rede!”
Atalhou, contudo, o sultão:
“Não te iludas, meu filho. Sou eu a causa da tua boa sorte. Foi o sultão quem pegou esses peixes para ti”.
Dizendo isso, montou a cavalo. O menino rogou-lhe que levasse a sua parte, mas o sultão não aceitou a oferta, dizendo que ficaria com a pesca do dia seguinte.
“Amanhã pescarás para mim”, disse ele.
E retornou ao palácio. No dia seguinte, mandou um dos seus oficiais buscar o menino. Quando eles chegaram, fez o menino sentar-se no trono, ao seu lado.
“Senhor”, acudiu um dos cortesãos, “esse menino é um mendigo!”
“Não te preocupes”, redarguiu o sultão, “ele agora é meu companheiro. E, visto que somos parceiros, não posso mandá-lo embora.”
Assim sendo, o sultão tratou-o como a um igual. Por fim, alguém perguntou ao menino:
“Como foi que vieste a lograr tamanha distinção?”
E o menino respondeu:
“A alegria chegou e a tristeza se foi, porque encontrei um monarca afortunado”.
Mahmud e o lenhador
De outra feita, quando cavalgava sozinho, o sultão Mahmud encontrou um velho lenhador que conduzia um burro carregado de espinheiros. A um dado momento, o animal tropeçou e, quando caiu, os espinhos feriram a cabeça do velho. Ao ver os espinheiros no chão, o burro de pernas para o ar e o homem esfregando a cabeça, o sultão perguntou:
“Ó infeliz, estás necessitando de um amigo?”
“Estou sim”, replicou o lenhador. “Bondoso cavaleiro, se quiseres ajudar-me, ainda colherei meus lucros, e, a ti, nenhum mal te advirá disso. Teu semblante é um bom presságio para mim.”
O bondoso sultão apeou do cavalo e, tendo puxado o burro para obrigá-lo a levantar-se, ergueu o feixe de espinheiros e amarrou-o ao lombo do animal. Em seguida, retornou, a cavalo, para onde estava o exército. E disse aos soldados:
“Um velho lenhador está vindo para cá com um burro carregado de espinheiros. Barrai-lhe o caminho para que ele tenha de passar diante de mim”.
Ao aproximar-se dos soldados, disse o lenhador para si: “Como passarei por eles com este frágil animal?” Entrou, assim, por outro caminho, mas, avistando o pára-sol real à distância, pôs-se a tremer: a estrada que se vira forçado a tomar o levaria a passar bem defronte do sultão. Ao aproximar-se um pouco mais, sua confusão aumentou, pois avistou debaixo do pára-sol um rosto familiar.
“Ó Deus”, exclamou, “em que situação me vejo! Hoje tive Muhmud por carregador!”
Quando o homem chegou à sua frente, o sultão Mahmud perguntou-lhe:
“Meu pobre amigo, que fazes para viver?”
Ao que o lenhador replicou:
“Já o sabeis. Sede sincero. Não me reconheceis? Sou um pobre velho, lenhador de profissão; dia e noite ajunto espinheiros no ermo e vendo-os, mas o meu burro está morrendo de fome. Se me quereis bem, dai-me um pouco de pão”.
“Pobre homem”, volveu o sultão, “quanto queres pelo teu feixe?”
“Visto que não quereis recebê-lo de graça e não desejo vendê-lo, dai-me uma bolsa de ouro.”
Ouvindo isso, os soldados gritaram:
“Dobra a língua, insensato! O teu feixe não vale sequer um punhado de cevada. Devias dá-lo por nada”.
O velho retorquiu:
“Está tudo muito bem, mas o seu valor agora se alterou. Quando um homem de sorte como o sultão põe as mãos no meu feixe de espinheiros, estes se transformam em rosas. Se quiser comprá-los, ele terá de pagar, no mínimo, um dinar, pois, ao tocá-los, aumentou cem vezes o valor dos meus espinheiros”.
O discurso do segundo pássaro
Outro pássaro, avizinhando-se da Poupa, disse:
“Ó protetora do exército de Salomão! Faltam-me forças para empreender esta jornada. Estou fraco demais para cruzar os vales. A estrada é tão difícil que me deitarei para morrer no primeiro pouso. Há vulcões pelo caminho. Além disso, não convém a todos empenharem-se numa empresa dessa natureza. Milhares de cabeças rolaram como rolam as bolas no pólo, pois muitos que partiram em demanda do Simurgh pereceram. Numa estrada como esta, onde inúmeras criaturas sinceras esconderam a cabeça com medo, que será de mim, que sou apenas pó?”
A Poupa respondeu:
“Ó tu, que tens o semblante pesaroso! Por que está tão oprimido o teu coração? Visto que tens tão escasso valor para o mundo, tanto faz que sejas jovem e valente ou velho e fraco. O mundo, de fato, é excremento; ali perecem criaturas diante de cada porta. Milhares ficam amarelas como a seda e morrem entre lágrimas de aflição. É melhor perderes a vida numa busca do que languesceres miseravelmente. Se não formos bem sucedidos e morrermos de dor, tanto pior; mas, visto que os erros são numerosos neste mundo, poderemos, pelo menos, evitar a prática de novos. Milhares de criaturas estão manhosamente ocupadas na procura do corpo morto do mundo; assim, se te entregares a esse comércio, sobretudo com astúcia, serás capaz de fazer do teu coração um oceano de amor? Dizem alguns que o desejo das coisas espirituais é presunção e que nenhum mero arrogante pode atingi-las. Mas não será melhor sacrificarmos a vida na busca desse desejo do que nos identificarmos com um negócio? Vi tudo e fiz tudo, e nada abalará minha resolução. Por muito tempo tratei com homens e vi como são poucos os que não estão realmente aferrados às riquezas. Enquanto não morrermos para nós mesmos e não nos identificarmos com alguma coisa ou com alguém, não seremos livres. O caminho espiritual não foi feito para os que estão envoltos na vida exterior. Se fores homem capaz de ação, põe os pés neste caminho e não te entregues a artifícios femininos. Sabe com certeza que, mesmo que a busca fosse ímpia, ainda assim seria necessário empreendê-la. De fato não é fácil; o fruto está sem folhas na árvore do amor. Dize ao que tem folhas que renuncie a elas.
“Quando senhoreia o homem, o amor levanta-lhe o coração, mergulha-o em sangue, arremessa-o, prostrado, para fora da cortina, não lhe dá descanso; mata-o e ainda exige o preço do sangue. Bebe a água das lágrimas e come o pão fermentado com o luto; mas, se for mais fraco do que a formiga, o amor lhe emprestará forças.”
Anedota de um contemplativo
Um louco, um idiota de Deus, andava nu quando outros homens andavam vestidos. E ele pediu:
“Ó Deus, dai-me um belo traje, e ficarei contente como os outros homens”.
Respondeu-lhe uma voz vinda do mundo invisível:
“Dei-te um sol quente; senta-te e deleita-te nele”.
“Por que me castigas?”, volveu o louco. “Uma roupa melhor não seria preferível ao sol?”
Tornou a voz:
“Espera dez dias com paciência, que, logo depois, te darei outra vestimenta”.
O sol crestou-o durante oito dias; findo esse período, apareceu um pobre e deu-lhe uma roupa que tinha um milhar de remendos. O louco disse a Deus:
“Ó vós, que tendes conhecimento das coisas ocultas, por que me destes esta vestimenta remendada? Queimastes, acaso, todas as vossas vestes e precisastes remendar esta velha? Costurastes, um ao outro, um milhar de trajes. Com quem aprendestes tal arte?”
Não é fácil ter tratos com a corte de Deus. O homem precisa tornar-se como o pó da estrada para chegar até lá. Depois de longa luta, imagina ter atingido a meta, quando, na verdade, ainda está longe dela.
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Próxima página: (continuação) A história de Rabi’ah
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