quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O que é liberdade? Krishnamurti

O que é liberdade?

Muitos filósofos têm escrito sobre a liberdade. Falamos sobre liberdade — liberdade para fazer o que quisermos, para ter o emprego de que gostamos, liberdade para escolher uma mulher ou um homem, liberdade para ler qualquer livro, ou liberdade para não ler absolutamente nada. Somos livres, e o que fazemos com essa liberdade? Usamos essa liberdade para nos expressarmos, para fazer aquilo de que gostamos. A vida está se tornando cada vez mais permissiva — você pode fazer amor no parque ou no jardim.

Temos toda espécie de liberdade, e o que temos feito com ela? Pensamos que onde há escolha há liberdade. Eu posso ir à Itália ou à França: é uma escolha. Mas a escolha dá liberdade? Por que temos que escolher? Se você é realmente lúcido, tem uma compreensão exata das coisas, não há escolha. Disso resulta uma ação correta. Apenas quando há dúvida e incerteza é que começamos a escolher. A escolha, então, se vocês me permitem dizê-lo, constitui um empecilho para a liberdade.

Nos estados totalitários não há liberdade alguma, pois eles têm a idéia de que a liberdade produz a degeneração do homem. Portanto, eles controlam, reprimem — vocês sabem o que está acontecendo.

Então, o que é liberdade? É algo que se baseia na escolha? É fazer exatamente o que queremos? Alguns psicólogos dizem que, se você sente alguma coisa, não deve reprimi-la ou controlá-la, mas deve expressá-la imediatamente. Jogar bombas é liberdade? — veja apenas a que reduzimos a nossa liberdade!

A liberdade está lá fora, ou aqui dentro? Onde você começa a procurar pela liberdade? No mundo exterior — onde você expressa o que quer que você queira, a tal liberdade individual — ou a liberdade começa dentro de você, para então se expressar inteligentemente fora de você? Compreendeu a minha pergunta? A liberdade só existe quando não há confusão dentro de mim, quando, psicologicamente, religiosamente, não há o perigo de eu cair em nenhuma armadilha — você entende? As armadilhas são inúmeras: gurus, sábios, pregadores, livros excelentes, psicólogos e psiquiatras — tudo armadilhas. E se estou confuso e há desordem, não preciso, primeiro, me livrar dessa desordem antes de falar em liberdade? Se não tenho nenhum relacionamento com minha mulher, com meu marido, ou com outra pessoa — porque nossos relacionamentos são baseados em imagens — surge o conflito, que é inevitável onde há divisão. Então, não deveria eu começar por aqui, dentro de mim, na minha mente, no meu coração, a ser totalmente livre de todos os medos, ansiedades, desesperos, e das mágoas e feridas de que sofremos por causa de alguma desordem psíquica? Observe tudo por si mesmo e livre-se disso!

Mas, aparentemente, nós não temos energia. Nós nos dirigimos aos outros para que nos dêem energia. Falando com o psiquiatra nós nos sentimos aliviados — a confissão e tudo o mais. Sempre dependendo de alguma outra pessoa. E essa dependência, inevitavelmente, causa conflito e desordem. Então, temos de começar a compreender a profundeza da liberdade; precisamos começar com aquilo que está mais perto: nós mesmos. A grandeza da liberdade, a verdadeira liberdade, a dignidade, a sua beleza, está em nós mesmos quando a ordem é completa. E essa ordem só vem quando somos uma luz para nós mesmos.

Krishnamurti

domingo, 25 de novembro de 2012

Ser Livre - Krishnamurti

Penso que deve interessar muito seriamente a todos nós o que vai pelo mundo, pois vê-se tanta tirania, tanto morticínio em nome desta ou daquela ideologia e que até nas chamadas democracias se acentua lentamente a tendência para moldar a mente humana em conformidade com determinado padrão de pensamento. Por toda parte, nos círculos religiosos e também no mundo político, onde quer que o homem viva, seja na aldeia, seja na cidade mais moderna, encontra-se essa tendência a ajustar-lhe a mente de determinada maneira; e pensamos que, desse modo, se alcançará uma ordem social que não conterá em si o germe da deterioração e da destruição. Estamos fazendo isso há séculos, não é verdade?

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Hesíquio o Sinaíta - A Vigilância

A vigilância

A vigilância é um método espiritual que, se diligentemente praticado por um longo período, nos liberta e nos ajuda a penetrar o mistério divino e os mistérios ocultos.

A vigilância é uma forma abrangente de todas as virtudes, é o silêncio do coração e quando livres de imagens mentais, é a guarda do intelecto.

É a quietude do coração, ininterrupta por qualquer pensamento.

Nessa quietude do coração respira e invoca sem parar o nome de Jesus .

Ela nos ensina como manter uma guarda firme sobre os sentidos.

Quando nos surge um mau pensamento logo o nosso intelecto e os nossos próprios pensamentos vão ‘ver o que se passa’ e nesse ‘interesse’ entram em relações apaixonadas com ele.

A vigilância é uma permanente fixação e suspensão dos pensamentos à entrada para o coração.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Sankara - a iluminação

“Na verdade”, dizem as escrituras, “O Atman é imortal”, mostrando assim que ele permanece indestrutível entre as coisas que mudam e perecem.

Pedras, árvores, relva, grãos, palha, roupa e todas as outras substâncias, quando queimadas, são reduzidas a cinza. O corpo, os sentidos, as forças vitais, a mente e todas as outras manifestações físicas, quando consumidas pelo fogo do conhecimento, tornam-se Brahman.

A escuridão se funde na luz do sol, o seu oposto. Do mesmo modo, este mundo aparente se funde em Brahman.

Quando se quebra o jarro, o éter que está dentro dele torna-se uno com o éter circundante. Quando os invólucros são destruídos, o conhecedor de Brahman toma-se Brahman.

Quando se despeja leite no leite, óleo no óleo, água na água, eles se misturam em absoluta unidade. Do mesmo modo, o vidente iluminado, o conhecedor do Atman, toma-se uno com o Atman.

Aquele que se libertou nesta vida alcança a libertação na morte e une-se eternamente com Brahman, a Realidade Absoluta. Esse vidente jamais renascerá.

Ele sabe que é uno com Brahman e consumiu os invólucros da ignorância no fogo desse conhecimento. Assim, ele se tomou Brahman. Como pode Brahman estar sujeito ao nascimento?

Analogamente, tanto a servidão como a libertação são invenções da nossa ignorância. Elas não existem realmente no Atman, tal como um pedaço de corda continua sendo corda, quer o confundamos ou não com uma cobra. A suposta cobra não existe realmente na corda.

As pessoas falam de servidão e libertação - referindo-se à presença ou à ausência do véu da ignorância. Mas, na realidade, Brahman não tem invólucro. Porque não existe outro senão Brahman - o primeiro sem um segundo. Se houvesse um invólucro, Brahman não seria único. As escrituras não admitem dualidade.

Servidão e libertação existem apenas na mente, mas o ignorante as atribui falsamente ao próprio Atman - da mesma forma que afirmam estar o sol escurecido quando ele está apenas coberto por uma nuvem. Mas Brahman, o primeiro sem um segundo, a realidade imutável, permanece independente. Ele é pura consciência.

Imaginar que o Atman pode ser escravizado ou libertado é falso. Tanto a servidão como a libertação são estados mentais. Nenhum deles pode ser atribuído a Brahman, a realidade eterna.

Por conseguinte, tanto a servidão como a libertação são ficções da ignorância. Elas não estão no Atman. O Atman é infinito, sem partes, está além da ação. É sereno, imaculado, puro. Como imaginar a dualidade em Brahman, que é inteiro como o éter, sem um segundo a realidade suprema?

Não existe nem nascimento nem morte, nem alma limitada ou excelsa, nem alma libertada ou em busca da libertação - esta é a verdade final e absoluta.

Revelei-te hoje o supremo mistério. Esta é a mais recôndita essência de todo o Vedanta, a jóia suprema de todas as escrituras. Considero-te o meu próprio filho - um verdadeiro aspirante à libertação. Estás purificado de todas as máculas desta época de trevas e tua mente está livre do desejo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um santo sufi - Martin Lings

Al-' Alawî: Um santo sufi do século XX

O Infinito ou o Mundo do Absoluto que concebemos como estando fora de nós é, ao contrário, universal e existe tanto dentro de nós como fora. Existe apenas Um Mundo, e este é Isto. Aquilo que concebemos como o mundo sensível, o mundo finito do tempo e do espaço, não é senão uma conglomeração de véus que escondem o Mundo Real. Estes véus são os nossos sentidos: os nossos olhos são os véus sobre a Verdadeira Vista, os nossos ouvidos são os véus sobre a Verdadeira Audição, e é assim também com os outros sentidos. Para nos tornarmos cientes da existência do Mundo Real, os véus dos sentidos devem ser removidos… e o que subsiste então do homem? Subsiste um ténue cintilar que lhe surge como a lucidez da sua consciência… Existe uma continuidade perfeita entre este cintilar e a Grande Luz do Mundo Infinito e, assim que esta continuidade for apreendida, a nossa consciência pode emanar e estender-se como que até ao Infinito e tornar-se Una com Ele, de modo que o homem passa a compreender que o Infinito Apenas é, e que ele, o humanamente consciente, existe apenas como um véu. Compreendido este estado, todas as Luzes da Vida Infinita podem penetrar a alma do sufi, e podem fazê-lo participar na Vida Divina, de forma que ele tem direito de exclamar: “Eu sou Alá”. A invocação do nome Allâh é como que um intermediário que avança e recua entre o cintilar da consciência e os esplendores ofuscantes do Infinito, afirmando a continuidade entre eles e tecendo-os cada vez mais próximos, em comunicação, até que são “unidos em identidade”.

Martin Lings 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A Visão Dzogchen

A essência mais profunda

A VISÃO

Tradicionalmente, o treinamento prático do Caminho Dozogchen é descrito com muita simplicidade em termos de Visão, Meditação e Ação. Ver diretamente o estado absoluto, a Base do nosso ser, é a Visão; o modo de estabilizar essa Visão e fazer dela uma experiência contínua é Meditação; integrar a Visão à nossa realidade total e à nossa vida é o que chamamos Ação.

O que é então a Visão? É nada menos que ver o estado real das coisas como elas são; saber que a verdadeira natureza da mente é a verdadeira natureza de tudo; e atingir a realização de que a verdadeira natureza da nossa mente é a verdade absoluta.

Dudjom Rinpoche diz:

A visão é a compreensão da consciência intrínseca desnuda, dentro da qual tudo está contido: a percepção sensorial e a existência fenomênica, o samsara e o nirvana. Essa consciência intrínseca e imediata tem dois aspectos: "vacuidade" como o absoluto, e "aparência" ou percepção como relativo.

O que isso significa é que todo o conjunto das possibilidades das aparências e todos os possíveis fenômenos em todas as diferentes realidades - todos eles, sem exceção, seja no samsara ou no nirvana - sempre foram e sempre serão perfeitos e completos, dentro da vasta e ilimitada extensão da natureza da mente. Mais ainda, que a essência de tudo seja vazia e "pura desde o início", sua natureza é rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades, um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que é sempre perfeito e espontâneo.

Como a mente de sabedoria dos budas pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como seu próprio rosto; está sempre com você, mas não pode vê-lo sem ajuda. Agora imagine que nunca viu um espelho antes. A introdução feita pelo mestre é colocar subitamente um espelho diante de você, no qual pela primeira vez vai ver seu próprio rosto refletido. Tal como seu rosto, a pura percepção de Rigpa [a base do nosso ser] não é algo "novo"que o mestre lhe está dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com você, mas até aquele momento, surpreendente, você nunca o tinha visto de maneira direta.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Contemplação Dzogchen

Introdução à Meditação

Encontrar-se no estado de contemplação significa estar completamente relaxado, assim se a pessoa se torna apegada a experiências de prazer, ou condicionada por uma visão ou um estado sem pensamentos, isto terá um efeito oposto ao desejado. A fim de relaxar, o indivíduo não deve estar "bloqueado" por uma experiência, tomando-a erroneamente pelo estado de contemplação. Este pode ser um grande obstáculo à realização. Se um praticante permanece absorvido por dias e dias num estado de prazer, ou de vacuidade, sem manter a presença da contemplação, isto é como cair adormecido em uma experiência. Isto acontece quando as experiências são erroneamente assumidas no lugar do verdadeiro objetivo da pessoa.

A prática do Dzogchen pode começar pela fixação em um objeto, a fim de acalmar os pensamentos da pessoa. Então ela relaxa a fixação, dissolvendo a dependência do objeto, e fixa o olhar no espaço aberto. Então, quando ela consegue tornar o estado calmo estável, é importante trabalhar com o movimento dos seus pensamentos e energia da pessoa, integrando este movimento com a presença da contemplação. Neste ponto a pessoa está pronta para aplicar a contemplação ao seu cotidiano.

Se alguma coisa maravilhosa aparece diante de nós, mas nós não entramos em julgamento em relação a ela, ela permanece parte de nossa claridade. O mesmo é verdadeiro se alguma coisa horrível nos aparece. Assim por que nós desenvolvemos desejo por uma e aversão pela outra? Claridade não pertence à nossa mente racional, mas à essência pura do estado primordial, que está além tanto do bom como do mau.

É importante manter a presença na contemplação, sem corrigir o corpo, a voz, ou a mente. O indivíduo precisa encontrar-se numa condição relaxada, mas os sentidos precisam estar presentes e alertas, porque eles são as portas para a claridade. A pessoa relaxa sem esforço nenhum, abandonando toda tensão com respeito à posição do corpo, respiração, e pensamentos, apenas mantendo uma presença vívida.

Quando alguém começa a praticar, pode parecer que a confusão de seus pensamentos está aumentando, mas isto é na verdade devido ao relaxamento da mente. De fato, este movimento de pensamentos sempre existiu; é que apenas agora a pessoa está consciente deles, porque a mente ficou mais clara, da mesma maneira que, enquanto o mar estiver agitado, não se pode ver seu fundo, mas quando ele se acalma pode-se ver o que está lá embaixo.

Quando nos tornamos conscientes do movimento de nossos pensamentos, precisamos aprender a integrá-los com presença, sem segui-los ou deixar-nos distrair por eles. O que queremos dizer com "deixar-nos distrair"? Se eu vejo uma pessoa e tomo uma antipatia imediata por ela, isto significa que eu permiti a eu mesmo ser pego num julgamento mental; isto é, eu me distrai. Se eu mantiver a presença, por outro lado, por que eu deveria tomar antipatia por alguém que eu vejo? Aquela pessoa também é realmente parte de minha própria claridade. Se eu realmente entender isto, todas as minhas tensões e conflitos se dissolverão, e tudo se estabilizará num estado de completo relaxamento.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

No Susto... Está Deus - Ken Wilber (2)

O despertar...                                                                                                

Mumon:  Para compreender essa coisa maravilhosa chamada iluminação você precisa olhar para a fonte dos seus pensamentos, aniquilando-os por essa maneira.

A segunda maior forma de meditação Zen que hoje se pratica é a da “iluminação silenciosa (mo chão)”, conhecida no Japão como shikan-taza, sentado em meditação “só para sentar”. O famoso Mestre do Ch”an, Hung Chih, descreve-a desta feição:

Silenciosa e serenamente esquecemos todas as palavras;
Clara e vividamente Aquilo aparece...
Quando o compreendemos, é vasto e sem limites;
Em sua Essência é percepção pura. 
Refletindo-se singularmente nessa brilhante percepção,
Cheio de assombro neste reflexo puro...
Um assombro infinito impregna esta serenidade, 
Nesta Iluminação todos os esforços intencionais se esvaem.
Silêncio é a palavra final.
O reflexo é a resposta a toda (manifestação). 
Despojada de qualquer esforço,
Essa resposta é natural e espontânea... 
A Verdade da iluminação silenciosa 
É perfeita e completa.


A iluminação silenciosa, despojada de todo esforço ou conceituação, é facilmente reconhecida como a percepção passiva. Mas, então, somos impelidos a perguntar: como a gente chega a essa fase? Não surpreendentemente, a resposta é a que começa o shikan-taza trazendo a mente a um estado de cristal, de alerta vigilante, de atenção intensa mas relaxada. Yasutani Roshi explica: 

Ora, no shikan-taza a mente precisa estar desapressada mas, ao mesmo tempo, firmemente plantada ou maciçamente composta, como, digamos, o Monte Fuji. Mas também precisa estar alerta, estendida, como a corda esticada de um arco. Dessa maneira, o shikan-taza é um estado intensificado de percepção concentrada em que não estamos nem tensos nem apressados e, por certo, nunca nos mostramos frouxos. É a mente de alguém diante da morte. Imaginemos que você esteja empenhado num duelo de esgrima, do tipo que costumava realizar-se no antigo Japão. Enquanto enfrenta o oponente, está incessantemente alerta, resoluto, preparado. Se relaxasse a vigilância, nem que fosse por um momento, teria sido atingido incontinenti. Junta-se uma multidão para assistir à luta. Como você não é cego, vê a multidão com o canto dos olhos e, como não é surdo, ouve o que ela diz. Mas nem por um instante sua mente se deixa capturar por essas impressões dos sentidos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

No Susto... Está Deus - Ken Wilber

Satori, iluminação, perfeição, despersonalização, desmaterialização - atenção total, perceção não-dual, liberdade... "Eu e o Pai somos Um"

Ken-Wilber - O Espectro da Consciência

Alan Watts:“Tudo o que precisa ser experimentado para a consciência cósmica já está presente, e tudo o que passar disso é obstrutivo e redundante.”Se conduzir a algum lugar, qualquer “como”, qualquer “maneira”, qualquer “caminho” conduz para longe do Agora. Isso reflete o fato de que, na frase de Nagarjuna:“Não há diferença alguma entre nirvana e samsara; não há diferença alguma entre samsara e nirvana”, e na afirmação de Dogen: “a meta e o caminho são um só”, e asseverações semelhantes dos Mestres de cada tradição, de que a iluminação e a ignorância, a realidade e a ilusão, o céu e o inferno, a liberação e a servidão - são todos não-duais e não devem ser separados. Dessa forma, “já estamos aonde todo e qualquer caminho pode levar-nos”.

Quase todos nós, entretanto, nos achamos na posição do homem que acredita que a terra é chata e só compreende o seu engano depois de dar uma volta completa ao mundo e acabar exatamente no ponto em que começou! Estamos convencidos de que carecemos de Mente e, assim, somos induzidos a fazer“exercícios espirituais” de uma forma ou de outra, até chegarmos, afinal, ao lugar exato de onde partimos. Aqui mesmo, agora mesmo. No dizer de Huang Pó:

Ainda que passes por todas as fases da jornada do Bodhisattva rumo ao estado de Buddha, uma por uma; quando, enfim, num único lampejo, atingires a plena compreensão, estarás apenas compreendendo a Natureza de Buddha que esteve contigo durante o tempo todo; e em todas as fases precedentes não lhe terás acrescentado absolutamente nada. Acabarás olhando para essas quantidades de trabalho e consecução como para ações irreais praticadas num sonho.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"asilo do repouso"- Hubert Benoit

Da humildade

Desejamos concluir este livro enfatizando um aspecto capital dessa compreensão teórica e prática, a única capaz de nos livrar da angústia. Trata-se de compreender a natureza exata da humildade e de perceber que nela está a chave da nossa liberdade e da nossa grandeza.

Estamos vivendo desde já em estado de satori; ficamos entretanto impossibilitados de usufruí-lo devido ao trabalho incessante de nossos automatismos psicológicos que aferrolham dentro de nós um circulo vicioso; nossa agitação imaginativo-emotiva nos impede de ver a nossa "natureza de Buda" e, julgando estar assim privados da nossa realidade essencial, somos forçados a imaginar para compensar essa carência ilusória.

Acredito estar separado de meu "ser" e o procuro para juntar-me a ele. Conhecendo-me apenas como indivíduo separado, procuro o Absoluto num molde individual; desejo me afïrmar absolutamente como ser-separado. Esse esforço cria e alimenta a minha "ficção divina", a minha pretensão fundamental a ser todo-poderoso como indivíduo no plano dos fenômenos.

Esse trabalho compensatório de meus automatismos psicológicos consiste, na minha representação imaginativa das coisas, em negar a minha atenção às constatações da minha impotência, e em retirar a minha pretensão nos casos em que a visão dessa minha impotência não pode ser evitada. Eu me arranjo de modo a jamais reconhecer a igualdade entre mim mesmo e o mundo exterior; declaro-me diferente do mundo exterior, desnivelado em relação a ele, acima dele quando posso, abaixo quando não posso. A ficção segundo a qual eu seria individualmente a Causa Primeira do Universo exige que só se cogite em condicionamento do mundo por mim: ou eu me vejo condicionando o mundo exterior, ou então me vejo incapaz de condicioná-lo, não podendo, porém, jamais reconhecer-me condicionado por ele num plano de igualdade. Daí a ilusão do "Não-Eu"; quando me vejo incapaz, trata-se do "Não-Eu"; eu não quero nunca reconhecê-lo como "Ele", por não ter consciência da hipóstase que nos une.

A impossibilidade em que hoje me encontro de usufruir da minha natureza mesma, da minha natureza-de-Buda, como homem universal e não como indivíduo separado, essa impossibilidade me obriga a fabricar continuamente uma representação radicalmente enganosa da minha situação no universo. Em lugar de me ver em igualdade com o mundo exterior, eu me vejo ora acima dele, ora abaixo, ora "no alto", ora "embaixo". Nessa ótica, na qual o "no alto" é Ser e o "embaixo" é Nada, sou obrigado a sempre fazer esforços em direção ao Ser. Todos os meus esforços tendem necessariamente, de modo direto ou indireto, a me elevar, seja grosseiramente, seja sutilmente ou, como se diz, "espiritualmente".

Antes do satori, todos os meus automatismos psicológicos naturais têm como base o amor-próprio, a pretensão pessoal, a reivindicação de "subir" de uma maneira qualquer; e é essa reivindicação de me elevar individualmente que me esconde minha dignidade universal infinita.