domingo, 12 de janeiro de 2014

A Escuta - J. Klein

Requer-se esforço neste caminho? Pessoalmente, acho que tenho cada vez menos energia para fazer um esforço em qualquer direção.

Você não pode fazer um esforço sem tensão. Mas, porque você faz um esforço? Apenas porque busca um resultado, algo fora de você mesmo. Uma vez que você saiba realmente que o que busca é sua natureza real, você perde o ímpeto para o esforço. Assim, em primeiro lugar, veja como você está fazendo esforço constantemente. Assim que estiver consciente deste processo, você já estará fora dele. E isto pode surgir como uma percepção original de que você é realmente quietude.

Mas esse ‘ver’ não requer algum esforço?

Não. Esse ‘ver’ é seu estado natural. Simplesmente, seja consciente de que você não vê. Torne-se mais consciente de que você reage constantemente. Ver não requer esforço porque sua natureza é ver, é estar em silêncio. No momento em que não busca um resultado, não busca criticar, avaliar ou concluir, simplesmente limitado ao ver, então você pode perceber esta reação e não é mais cúmplice dela.

No curso da meditação, à medida que o processo de esvaziamento continua, vem este pensamento: “Isto é apenas um pensamento”. Mas o pensamento “Isto é apenas um pensamento” é um pensamento também, não é?

Absolutamente. Ver, em si, não é um pensamento, mas, no princípio, nós o conhecemos como limitado apenas à percepção de objetos. Mais tarde, surge o puro ver sem objeto. Então, há o discernimento de que você é esse puro ver e que tudo o que é visto aparece em você. Neste momento, o ver não é mais afetado pelo que vê.

Focalizar a atenção sobre algo estimula a tensão. Embora possam existir momentos de desapego, a maioria das vezes você está envolvido com o que está vendo. Mas, através do processo da observação, você pode chegar ao puro ver sem objeto. Dê ao visto a liberdade total sem tentar controlá-lo. E, como o visto é energia projetada sobre uma aparição naquele que vê, no momento em que o que se vê está livre de localização, dissolve-se naquele que vê, posto que o visto é descontínuo, enquanto o que vê é contínuo. O percebedor final é encontrado, em primeira instância, através desta relação entre o que vê e o que é visto.

Nós, geralmente, apenas conhecemos o que vê através do que é visto. Nos momentos de puro ver, dizemos que nada existe, pois apenas nos conhecemos na relação sujeito-objeto. Mas, uma vez que estejamos convencidos de que por trás do que é visto está o que vê e que o que é visto aparece no que vê, então não colocamos mais a ênfase no que é visto, mas no que vê.

Isto não é estabelecer um objetivo para quem nunca o experimentou? Eu nunca vi sem um objeto ou sem projetar minha própria imagem sobre um objeto, ainda assim, sei que há um modo de ver no qual não estou vendo apenas imagens criadas pela mente... E então como...

Para ir para trás? Mas você conhece momentos em sua vida nos quais há apenas pura visão sem nada que seja visto. Digamos que você tenha um problema. À medida que o penetra, chega o momento em que o problema está completamente resolvido. Há satisfação completa, sem algum desejo de acrescentar ou subtrair qualquer coisa. Quando um desejo é realizado, você chega a um estado de completa ausência de desejo no qual nem o sujeito que deseja nem o objeto desejado estão presentes. Você nem mesmo pode dizer que haja felicidade, pois você é felicidade. Mas, depois de viver isto, veja como o ego se intromete para aproveitar o momento e objetivá-lo, tranformando-o em um tipo de caricatura, semelhante ao palhaço em um circo que exige o aplauso do público embora não seja o artista principal.

Poderia falar mais sobre o pensamento como uma defesa?

Certamente, quando falo sobre isto, falo com muito cuidado. Há um momento em que você pode ver que, antes de surgir o pensamento, há uma pulsação, e a potencialidade do pensamento já está presente ali. A pulsação impressiona o cérebro e você, instintivamente, busca o símbolo, a formulação.

Esta pulsação pode se aquietar antes de transformar-se em pensamento?

Sim, se você estiver muito atento, poderá deter a pulsação. Percebê-la antes que se transforme em pensamento reduz as vibrações do cérebro e, assim, acalma-se a agitação mental e física.

Devemos ver que fazer ou não fazer são ainda fazer. Este processo de ter e vir a ser cessa apenas quando escutamos, pois nossa verdadeira natureza é a escuta. Os estados de vigília, sonho e sono profundo são sobreposições à pura escuta, a qual não se refere ao ouvinte ou ao que é ouvido. Todos os estados aparecem na escuta. Assim, quanto mais você estiver presente na escuta, maior será o abandono do fazer e do não-fazer.

Habitualmente, quando nós falamos da escuta, pretendemos falar de atenção a algo em particular. Mas, quando eu falo da escuta, tenho em vista a escuta que se refere apenas a si mesma. É como alguém perguntando: “O que você tem em sua boca?” Você diz: “Nada”. Mas na realidade você tem o sabor de sua boca. Pode não haver sal, açúcar, ou ácido nela, mas o sabor de sua boca está presente. A escuta pura tem seu próprio sabor.

Algumas vezes, escuto uma de suas palestras e, depois, não posso recordar nada do que você disse.

Quando você escuta sem avaliar ou concluir, você não pode memorizar o que ouviu. Isto volta para você, mas não através do processo ordinário de memória. Se você tenta retê-lo, o que você guarda? Apenas as palavras, a formulação, e então você ouve através do véu do já conhecido, através da comparação com o passado. Você deve tornar-se inocente em sua escuta.

Quando você ouve sem tirar quaisquer conclusões, o que estava por trás da escuta aflora em um determinado momento, talvez no dia seguinte ou em um mês, ou em seis meses, mas este afloramento não é devido a qualquer esforço para guardar o que ouviu. O sabor real é perdido no processo de memorização.

Freqüentemente há coisas que você diz que me impressionam particularmente e que aderem à minha mente. Por exemplo, há poucos dias, você disse: “Pare de eliminar. Veja o que você está construindo continuamente”.

Mas você não tem feito nenhum esforço para lembrar disto. Vem a você.
Nós podemos lembrar muito pouco de um modo consciente. Pense sobre todas as experiências que teve durante sua vida e em quão pouco delas você lembra realmente. Você esqueceu inclusive o sentimento com o qual acordou esta manhã ou o que você comeu ontem ou o que estava pensando às três horas de hoje.

Conforme a vibração do cérebro diminui, é possível relembrar coisas que foram esquecidas pela memória ordinária. Em uma freqüência muito baixa, o índivíduo pode retornar inclusive à uma encarnação anterior. Mas as experiências deste tipo são, mais ou menos, distrações, formas de dar sustentação à idéia da pessoa. Não obstante a redução da freqüência do cérebro, continuamos a nos identificar com o ego. Por outro lado, a tensão ainda aparece quando se realizou o Eu. Mas alguém que vive no Eu com pleno conhecimento está fora do processo de vir-a-ser, de modo que as funções do cérebro e do corpo são totalmente diferentes daquelas de uma pessoa que não tenha realizado o Eu.

E seus sentidos funcionam diferentemente?

Geralmente, todos os nossos sentidos funcionam através da apreensão. A mente projeta algo externamente para ser apropriado pelos sentidos. Na realidade, não há nada fora de nossa Consciência.
Quando vemos um pássaro, há inicialmente pura percepção, mas, depois, nós o conceituamos. No momento em que há conceituação, a percepção não está mais presente, porque um conceito e uma percepção não podem existir simultaneamente. Se você abandona o conceito, o que permanece? Você se identifica com o pássaro. Mas esta identidade não é uma imagem mental da unidade. É uma experiência global.

Mas, no momento da unidade, você é um com o todo, não é? Ou você pode ser simplesmente um com o pássaro e não o ser com tudo o mais?

Você é apenas ser. Quando você abandona a forma e o nome do homem que você vê, o que permanece? O homem real aparece, e nisto há unidade. No instante em que você abandona a forma, abandona o corpo. Quando abandona o nome, abandona a mente. Assim, só o ser permanece, e o ser é indivisível. É a corrente da qual falamos antes. Quando a corrente está presente, não há mais fixação ou repetição, apenas o refluxo e o fluir da criatividade.
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Pergunta: Em uma palestra anterior, você disse que a realização do que realmente somos não requer esforço. Mas, se nós queremos aprender a tocar piano, precisamos praticar muito antes de fazê-lo sem esforço. Se o esforço se aplica a objetos limitados, por que não deveria ser aplicado ao infinito?

Jean Klein: Aprendemos a tocar piano observando uma apresentação da música e tentando exteriorizá-la no piano. Isto não requer nenhum esforço. Na primeira vez que você toca uma peça, você observa o que acontece. Observando a posição de suas mãos, a forma em que a música soa, e assim por diante, você entra em contato com ela. Tocando-a uma segunda vez, você começará a discernir o que pode impedir uma execução perfeita da peça. E, na terceira vez, você a toca perfeitamente.

Da mesma forma, você chega à compreensão de sua natureza real. Primeiramente, há observação, a qual produz uma discriminação que conduz à percepção espontânea. Nada disto requer esforço.

A palavra “esforço” implica intenção, vontade de atingir algum fim. Mas este fim é uma projeção do passado, da memória, e assim deixamos de estar presentes no momento atual. Pode ser exato falar de “atenção correta” no sentido de uma escuta incondicionada, mas esta atenção é diametralmente oposta ao esforço já que é inteiramente livre de orientação, motivação e projeção. Na atenção correta, nossa escuta é incondicionada; não existe a imagem de uma pessoa para impedir a audição global. Não é limitada ao ouvido; todo o corpo ouve. Está completamente fora da relação sujeito-objeto. O escutar acontece, mas nada é ouvido e ninguém escuta. E , como a escuta incondicionada é nossa real natureza, conhecemos a nós mesmo na escuta.

Mas raramente escutamos de verdade. Nós vivemos mais ou menos continuamente no processo de devenir. Projetamos uma imagem de ser alguém e nos identificamos com ela. E, enquanto nos tomamos por uma entidade independente, há uma fome contínua, um sentimento de incompletude. O ego está constantemente buscando satisfação e segurança, daí sua perpétua necessidade de ser, de realizar, de alcançar. Desta forma, nós nunca contatamos a vida realmente, pois isto requer abertura de momento a momento. Nesta abertura, a agitação estimulada pela tentativa de saciar uma ausência em você mesmo chega ao fim e, na quietude que fica, você é direcionado de volta para sua integridade. Sem uma auto-imagem você é realmente um com a vida e com o movimento da inteligência. Apenas então nós podemos falar de ação espontânea. Todos conhecemos momentos quando a pura inteligência, livre da interferência psicológica, surge, mas logo que retornamos a uma imagem de ser alguém, questionamos esta intuição perguntando se ela é certa ou errada, boa ou má para nós, e assim sucessivamente. O quer que façamos intencionalmente pertence ao “ego-eu” e, embora apareça como ação, é realmente reação. Apenas o que surge espontaneamente do silêncio é ação e não deixa nenhum resíduo. Você nem sequer pode recordá-la. A ação intencional do “ego-eu” sempre deixa um resíduo que emergirá talvez no estado de sonho ou mesmo como uma fixação que podemos mais tarda chamar enfermidade.

Na espontaneidade a ação ocorre, mas ninguém atua. Não há nenhuma estratégia, nenhuma preparação. Há apenas Consciência livre da agitação e da memória e, nesta quietude, todas as ações são espontâneas, pois cada situação pertence a sua abertura, e ela mesma lhe diz exatamente como proceder. A ação real não surge do raciocínio, mas da observação receptiva. Por exemplo, quando você vê uma criança pequena atravessando a rua, você não pára e pensa, “Devo gritar pedindo ajuda ou devo ir e pegá-la, ou devo deixar que vá só?” Você age. Mesmo que você tenha realizado vinte vezes esta ação, é nova a cada vez. Pertence absolutamente ao momento."

A Simplicidade de Ser - Jean Klein

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