F. Pessoa

Começa a haver

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dóí-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa.


O Meu Olhar


O meu olhar é nítido como um girassol.
     Tenho o costume de andar pelas estradas
     Olhando para a direita e para a esquerda,
     E de, vez em quando olhando para trás...
     E o que vejo a cada momento
     É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
     E eu sei dar por isso muito bem...
     Sei ter o pasmo essencial
     Que tem uma criança se, ao nascer,
     Reparasse que nascera deveras...
     Sinto-me nascido a cada momento
     Para a eterna novidade do Mundo...
     Creio no mundo como num malmequer,
     Porque o vejo.  Mas não penso nele
     Porque pensar é não compreender ...

     O Mundo não se fez para pensarmos nele
     (Pensar é estar doente dos olhos)                  
     Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

     Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
     Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
     Mas porque a amo, e amo-a por isso,
     Porque quem ama nunca sabe o que ama
     Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
     Amar é a eterna inocência,
     E a única inocência não pensar...



Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Acaso



No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.  A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.   

Perco-me subitamente da visão imediata,  
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa. 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades! 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ... 
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Acordar


Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
 Acordar da Rua do Ouro, 
 Acordar do Rocio, às portas dos cafés, 
 Acordar 
 E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
 Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 
 
 Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
 Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.  
 À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se  
 Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,  
 E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 
 
 Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
 Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
 Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
 São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
 Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
 Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, 
 Seja 
 
 A mulher que chora baixinho 
 Entre o ruído da multidão em vivas... 
 O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
 Cheio de individualidade para quem repara... 
 O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
 Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
 Tudo isto tende para o mesmo centro, 
 Busca encontrar-se e fundir-se 
 Na minha alma. 
 
 Eu adoro todas as coisas 
 E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
 Tenho pela vida um interesse ávido 
 Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
 Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
 Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
 Para aumentar com isso a minha personalidade. 
 
 Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
 E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
 Como uma criança a quem a ama beija. 
 Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
 Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
 Do que as que vi ou verei. 
 Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
 A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
 Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 
 
 Dá-me lírios, lírios 
 E rosas também. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também, 
 Crisântemos, dálias, 
 Violetas, e os girassóis 
 Acima de todas as flores... 
 
 Deita-me as mancheias, 
 Por cima da alma, 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também... 
 
 Meu coração chora 
 Na sombra dos parques, 
 Não tem quem o console 
 Verdadeiramente, 
 Exceto a própria sombra dos parques 
 Entrando-me na alma, 
 Através do pranto. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E llrios também... 
 
 Minha dor é velha 
 Como um frasco de essência cheio de pó. 
 Minha dor é inútil 
 Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
 E minha dor é silenciosa e triste 
 Como a parte da praia onde o mar não chega. 
 Chego às janelas 
 Dos palácios arruinados 
 E cismo de dentro para fora 
 Para me consolar do presente. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também... 
 
 Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
 Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
 Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
 Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
 Como um palco deserto. 
 
 Por isso, não te importes com o que eu penso, 
 E muito embora o que eu te peça 
 Te pareça que não quer dizer nada, 
 Minha pobre criança tísica, 
 Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também...



Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Adiamento


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 
   Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 
   E assim será possível; mas hoje não... 
   Não, hoje nada; hoje não posso. 
   A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 
   O sono da minha vida real, intercalado, 
   O cansaço antecipado e infinito, 
   Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... 
   Esta espécie de alma... 
   Só depois de amanhã... 
   Hoje quero preparar-me, 
   Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte... 
   Ele é que é decisivo. 
   Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 
   Amanhã é o dia dos planos. 
   Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo; 
   Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 
   Tenho vontade de chorar, 
   Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 
 
   Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 
   Só depois de amanhã... 
   Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. 
   Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 
   Depois de amanhã serei outro, 
   A minha vida triunfar-se-á, 
   Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 
   Serão convocadas por um edital... 
   Mas por um edital de amanhã... 
   Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 
   Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 
   Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 
   Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... 
   Antes, não... 
   Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 
   Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 
   Só depois de amanhã... 
   Tenho sono como o frio de um cão vadio. 
   Tenho muito sono. 
   Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 
   Sim, talvez só depois de amanhã... 
 
   O porvir... 
   Sim, o porvir...
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Começo a conhecer-me. Não existo
 
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, 
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ... 
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo. 
É um universo barato.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)



Realidade
 
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade ...
Há vinte anos!...
O que eu era então!  Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais
lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

A Espantosa Realidade das Cousas
  
     A espantosa realidade das cousas
     É a minha descoberta de todos os dias.
     Cada cousa é o que é,
     E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
     E quanto isso me basta.
     Basta existir para se ser completo.

     Tenho escrito bastantes poemas.
     Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

     Cada poema meu diz isto,
     E todos os meus poemas são diferentes,
     Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

     Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
     Não me ponho a pensar se ela sente.
     Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
     Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
     Gosto dela porque ela não sente nada.
     Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

     Outras vezes oiço passar o vento,
     E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

     Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
     Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
     Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
     Porque o penso sem pensamentos
     Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

     Uma vez chamaram-me poeta materialista,
     E eu admirei-me, porque não julgava
     Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
     Eu nem sequer sou poeta: vejo.
     Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
     O valor está ali, nos meus versos.
     Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Se te Queres

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Esta Velha
 
   Esta velha angústia,
   Esta angústia que trago há séculos em mim,
   Transbordou da vasilha,
   Em lágrimas, em grandes imaginações,
   Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
   Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
   Transbordou.
   Mal sei como conduzir-me na vida
   Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
   Se ao menos endoidecesse deveras!
   Mas não: é este estar entre,
   Este quase,
   Este poder ser que...,
   Isto.

   Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
   Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
   Estou doido a frio,
   Estou lúcido e louco,
   Estou alheio a tudo e igual a todos:
   Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
   Porque não são sonhos.
   Estou assim...

   Pobre velha casa da minha infância perdida!
   Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
   Que é do teu menino?  Está maluco.
   Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
   Está maluco.
   Quem de quem fui?  Está maluco.  Hoje é quem eu sou.

   Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
   Por exemplo, por aquele manipanso
   Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
   Era feiíssimo, era grotesco,
   Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
   Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
   Júpiter, Jeová, a Humanidade —
   Qualquer serviria,
   Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

   Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


1 comentário:

  1. "Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro e tampouco acredito que eu exista por detrás de mim" (Alberto Caeiro).

    "Que me importa a mim os homens? [...] Todo o mal vem de nos importarmos uns com os outros" (Alberto Caeiro_.

    "Louvado seja Deus que não sou bom e tenho o egoísmo natural das flores". (Alberto Caeiro)

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