A Conferência dos Pássaros - Farid Ud-Din Attar
Louvado seja o Santo Criador, que colocou o seu trono sobre as águas e fez todas as criaturas terrestres. Aos Céus concedeu o domínio e à Terra, a dependência; aos Céus deu o movimento e à Terra, o descanso uniforme.
Ergueu o firmamento acima da terra como uma tenda, sem colunas para sustentá-la. Em seis dias criou os sete planetas e com duas letras criou as nove cúpulas dos Céus.
No princípio, iluminou as estrelas para que, à noite, os Céus pudessem jogar triquetraque.
Dotou a rede do corpo de diversas propriedades e despejou poeira na cauda do pássaro da alma.
Fez líquido o Oceano como sinal de servidão, e os cumes das montanhas cobrem-se de gelo com medo dele. Secou o leito do mar e de suas pedras tirou rubis, e de seu sangue, almíscar.
Às montanhas concedeu picos a modo de adagas, e valas a modo de cintos; é por isso que elas erguem a cabeça, orgulhosas.
Às vezes, faz cachos de rosas saltarem da face do fogo. Às vezes, joga pontes de um lado para outro sobre a face das águas.
Fez um mosquito picar Nenrode, seu inimigo, que sofreu durante quatrocentos anos.
Em sua sabedoria, fez a aranha tecer sua teia para proteger o maior dos homens.
Espremeu a cintura da formiga para que parecesse um fio de cabelo, e fê-la companheira de Salomão.
Deu-lhe os mantos negros dos abássidas e um traje de brocado destecido digno do pavão.
Quando percebeu que o tapete da natureza era defeituoso, emendou-o convenientemente.
Tingiu a espada com a cor da tulipa; e do vapor fez uma cama de nenúfares.
Embebeu torrões de terra em sangue a fim de poder tirar deles cornalinas e rubis.
O Sol e a Lua — um de dia, outra à noite — prosternaram-se no pó em adoração; e é da sua reverência que lhes vem o movimento. Foi Deus quem estendeu o dia em alvura, e foi ele quem dobrou a noite e a enegreceu.
Ao papagaio deu um colar de ouro; e da poupa fez um mensageiro do Caminho.
O firmamento é como um pássaro que rufla as asas do jeito que Deus lhe ensinou, batendo a cabeça na Porta como se fosse um martelo.
Deus fez o firmamento para girar — a noite segue-se ao dia, e o dia, à noite.
Quando ele sopra o barro, cria o homem; e, com um pouco de vapor, forma o mundo.
Às vezes, faz o cachorro ir à frente do viageiro; às vezes, usa o gato para mostrar o Caminho.
Às vezes, dá o poder de Salomão a um cajado; às vezes, concede eloqüência à formiga.
De um cajado faz uma serpente; e, por meio de um cajado, faz jorrar uma torrente de água.
Colocou no firmamento o orbe do orgulhoso, e prende-o com ferro quando, incandescente, ele míngua.
Tirou um camelo de uma rocha e fez mugir o bezerro de ouro.
No inverno, espalha a neve de prata; no outono, o ouro das folhas amarelas.
Estende uma coberta sobre o espinho; e tinge-o com a cor do sangue.
Ao jasmim dá quatro pétalas e põe na cabeça da tulipa um gorro vermelho.
Depõe uma coroa de ouro sobre a testa do narciso; e deixa cair pérolas de orvalho dentro do seu santuário.
À idéia de Deus a mente peleja em vão, a razão sucumbe; mercê de Deus, o céu gira, a terra cambaleia.
Desde o dorso do peixe até a lua, cada átomo é uma testemunha do seu Ser.
Tanto as profundezas da terra como as culminâncias do céu prestam-lhe sua homenagem particular.
Deus produziu o vento, a terra, o fogo e o sangue, e por eles anunciou o seu segredo.
Tomou do barro, amassou-o com água e, depois de quarenta manhãs, colocou nele o espírito que vivifica o corpo.
Deus deu-lhe inteligência para que ele pudesse ter o discernimento das coisas.
Quando viu que a inteligência tinha discernimento, deu-lhe conhecimento, para que ele pudesse pesar e ponderar. Mas quando o homem entrou na posse das suas faculdades, confessou sua impotência e foi dominado pelo assombro, ao passo que seu corpo se entregou a atos exteriores. Amigos ou inimigos, todos inclinam a cabeça sob o jugo que Deus, em sua sabedoria, impõe; e, o que é surpreendente, ele nos vigia a todos.
No princípio dos séculos, Deus usou as montanhas como pregos para fixar a Terra; e lavou o rosto da Terra com a água do Oceano. Em seguida, colocou a Terra no lombo de um touro, o touro num peixe, e o peixe no ar. Mas, em que descansava o ar? Em nada. Mas nada é nada — e tudo o que é nada. Admira, pois, as obras do Senhor, embora Ele mesmo as considere nada. E, visto que só existe a sua Essência, é certo que não há nada senão Ele. O seu trono está sobre as águas, e o mundo está no ar. Mas deixa as águas e o ar, pois tudo é Deus; o trono e o mundo são apenas um talismã. Deus é tudo, e as coisas só têm valor nominal; o mundo visível e o mundo invisível são apenas Ele mesmo.
Não há ninguém senão Ele. Infelizmente, porém, ninguém pode vê-lo. Os olhos são cegos, ainda que o mundo seja alumiado por um sol brilhante. Se te fosse possível vislumbrá-lo, perderias o juízo, e se o visses completamente perder-te-ias a ti.
Todos os homens que têm consciência da própria ignorância arregaçam a fralda das vestes e dizem, sinceros: “Ó tu, que não te deixas ver, embora nos faças conhecer-te, todo mundo é tu, e ninguém senão tu é manifesto. A alma se esconde no corpo, e tu te escondes na alma. Ó tu, que estás escondido naquilo que se esconde, és mais do que tudo. Todos se vêem em ti e te vêem em tudo. Visto que a tua morada está cercada de guardas e sentinelas, como poderemos aproximar-nos da tua presença? Nem a mente nem a razão têm acesso à tua essência, e ninguém conhece teus atributos. Por seres eterno e perfeito, estás sempre confundindo o sábio. Que mais poderemos dizer, se não podes ser descrito?
Ó meu coração, se desejas chegar ao princípio da compreensão, caminha com cuidado. Para cada átomo há uma porta diferente, e para cada átomo há um caminho diferente que conduz ao Ser misterioso de que estou falando. Para nos conhecermos precisamos viver uma centena de vidas. Mas precisas conhecer a Deus por Ele mesmo e não por ti; é Ele que abre o caminho que conduz a Ele, não a sabedoria humana. O conhecimento d’Ele não está na porta dos retóricos. O conhecimento e a ignorância são neste caso a mesma coisa, pois não explicam nem descrevem. As opiniões dos homens sobre isso surgem apenas na imaginação deles; e é absurdo tentar deduzir alguma coisa do que dizem: bem ou mal, eles o disseram de si mesmos. Deus está além do conhecimento e além da evidência, e nada pode dar idéia da sua Sagrada Majestade.
Ó vós, que dais valor à verdade, não procureis um símile; a existência desse Ser sem igual não admite nenhum. Uma vez que não lhe compreenderam a mais mínima partícula, os profetas e os mensageiros celestes inclinaram a testa até o pó, dizendo: “Não te conhecemos como realmente deves ser”.
Quem sou eu, pois, para vangloriar-me de conhecê-lo? Ó filho ignorante do primeiro homem, o califa de Deus na terra, forceja por participar do conhecimento espiritual de teu pai. Todas as criaturas que Deus arranca do nada para a sua existência prostram-se diante dele. Quando quis criar Adão, fê-lo sair de trás de uma centena de véus, e disse-lhe: “Ó Adão, todas as criaturas me adoram; adorado por tua vez”. O único que fugiu a essa adoração foi transformado de anjo em demônio. Amaldiçoado, não teve conhecimento do segredo. Enegreceu-se-lhe o rosto, e ele disse a Deus: “Ó tu, que possuis a independência absoluta, não me desampares”.
Respondeu-lhe o Altíssimo:
“Ó tu, que estás amaldiçoado, sabe que Adão é, ao mesmo tempo, meu administrador e rei da natureza. Caminha hoje diante dele e amanhã queima para ele o ispand”.
Quando a alma se juntou ao corpo fez parte do todo; nunca houve tão maravilhoso talismã. Como a alma tinha uma porção do que é superior e o corpo uma porção do que é inferior, formavam uma mistura de barro pesado e espírito puro. Por essa mistura, tornou-se o homem o mais surpreendente dos mistérios. Não conhecemos nem compreendemos coisa alguma do nosso espírito. Queres dizer alguma coisa sobre isso? Seria melhor que te calasses. Muitos conhecem a superfície deste mundo, mas nada entendem das suas profundidades; e o mundo visível é o talismã que o protege. Mas esse talismã de obstáculos corpóreos acabará se quebrando. Encontrarás o tesouro quando o talismã desaparecer; a alma se manifestará quando o corpo for posto de lado. Mas tua alma é outro talismã; é outra substância deste mistério. Percorre, pois, o caminho que eu te indicar, mas não peças explicações.
Neste vasto oceano, o mundo é um átomo, e o átomo, um mundo. Quem sabe o que vale mais aqui, a cornalina ou o seixo?
Arriscamos nossa vida, nossa razão, nosso espírito, nossa religião, para compreender a perfeição de um átomo. Costura os teus lábios e nada perguntes sobre o empíreo ou o trono de Deus. Ninguém conhece realmente a essência do átomo — pergunta a quem quiseres. Os Céus são como uma cúpula às avessas, sem estabilidade, que se move e não se move ao mesmo tempo. Um está perdido na contemplação desse mistério — é véu sobre véu; outro é como a figura pintada na parede, e outro só consegue morder o dorso da própria mão.
Pensa nos que entraram no caminho do Espírito. Reflete no que aconteceu a Adão; calcula os anos que ele passou a lastimar-se. Contempla o dilúvio de Noé e tudo o que esse patriarca sofreu nas mãos dos maus. Considera Abraão, cheio do amor a Deus: sofreu torturas e foi lançado ao fogo. Vê o desventurado Ismael, oferecido em sacrifício pelo amor divino. Volta-te para Jacó, que ficou cego de tanto chorar pelo filho. Olha para José, admirável tanto no poder como na escravidão, no poço e na prisão. Lembra-te do infeliz Jó, estendido no chão, presa de vermes e lobos. Pensa em Jonas, que, tendo-se desviado do Caminho, foi transferido da lua para a barriga do peixe. Acompanha Moisés desde o nascimento: uma caixa serviu-lhe de berço, e o faraó o exaltou. Repara em Davi, que fez para si um peito de armas e cujos suspiros derreteram o ferro como se fosse cera. Atenta para Salomão, cujo império foi senhoreado por um djim. Não te esqueças de Zacarias, cujo amor a Deus era tão ardente que ele permaneceu em silêncio quando o mataram; e João Batista, desprezado perante o povo, e que teve a cabeça posta numa bandeja. Pasma diante do Cristo ao pé da cruz, quando se salvou das mãos dos judeus. E, finalmente, pondera em tudo o que o Chefe dos Profetas sofreu com os insultos e injúrias dos maus.
Depois disso, achas que será fácil chegares ao conhecimento das coisas espirituais? Significa nada mais e nada menos do que morrer para tudo. Que posso dizer mais, se não há mais nada a dizer, e não sobrou um rosa sequer na roseira! Ó Sabedoria! Não és mais que uma criança que mama; e a razão dos velhos e experientes se desgarra nesta busca. Como serei eu, néscio, capaz de chegar à Essência? E ainda que chegue, como serei capaz de transpor-lhe a porta? Ó Sagrado Criador! Vivifica-me o espírito! Crentes e descrentes estão igualmente mergulhados no sangue, e minha cabeça gira como os céus. Não estou desesperançado, mas estou impaciente.
Meus amigos! Somos vizinhos uns dos outros; eu quisera repetir-vos meu discurso dia e noite, para que não deixásseis, nem por um momento, de ansiar por sair à procura da Verdade.
Louvado seja o Santo Criador, que colocou o seu trono sobre as águas e fez todas as criaturas terrestres. Aos Céus concedeu o domínio e à Terra, a dependência; aos Céus deu o movimento e à Terra, o descanso uniforme.
Ergueu o firmamento acima da terra como uma tenda, sem colunas para sustentá-la. Em seis dias criou os sete planetas e com duas letras criou as nove cúpulas dos Céus.
No princípio, iluminou as estrelas para que, à noite, os Céus pudessem jogar triquetraque.
Dotou a rede do corpo de diversas propriedades e despejou poeira na cauda do pássaro da alma.
Fez líquido o Oceano como sinal de servidão, e os cumes das montanhas cobrem-se de gelo com medo dele. Secou o leito do mar e de suas pedras tirou rubis, e de seu sangue, almíscar.
Às montanhas concedeu picos a modo de adagas, e valas a modo de cintos; é por isso que elas erguem a cabeça, orgulhosas.
Às vezes, faz cachos de rosas saltarem da face do fogo. Às vezes, joga pontes de um lado para outro sobre a face das águas.
Fez um mosquito picar Nenrode, seu inimigo, que sofreu durante quatrocentos anos.
Em sua sabedoria, fez a aranha tecer sua teia para proteger o maior dos homens.
Espremeu a cintura da formiga para que parecesse um fio de cabelo, e fê-la companheira de Salomão.
Deu-lhe os mantos negros dos abássidas e um traje de brocado destecido digno do pavão.
Quando percebeu que o tapete da natureza era defeituoso, emendou-o convenientemente.
Tingiu a espada com a cor da tulipa; e do vapor fez uma cama de nenúfares.
Embebeu torrões de terra em sangue a fim de poder tirar deles cornalinas e rubis.
O Sol e a Lua — um de dia, outra à noite — prosternaram-se no pó em adoração; e é da sua reverência que lhes vem o movimento. Foi Deus quem estendeu o dia em alvura, e foi ele quem dobrou a noite e a enegreceu.
Ao papagaio deu um colar de ouro; e da poupa fez um mensageiro do Caminho.
O firmamento é como um pássaro que rufla as asas do jeito que Deus lhe ensinou, batendo a cabeça na Porta como se fosse um martelo.
Deus fez o firmamento para girar — a noite segue-se ao dia, e o dia, à noite.
Quando ele sopra o barro, cria o homem; e, com um pouco de vapor, forma o mundo.
Às vezes, faz o cachorro ir à frente do viageiro; às vezes, usa o gato para mostrar o Caminho.
Às vezes, dá o poder de Salomão a um cajado; às vezes, concede eloqüência à formiga.
De um cajado faz uma serpente; e, por meio de um cajado, faz jorrar uma torrente de água.
Colocou no firmamento o orbe do orgulhoso, e prende-o com ferro quando, incandescente, ele míngua.
Tirou um camelo de uma rocha e fez mugir o bezerro de ouro.
No inverno, espalha a neve de prata; no outono, o ouro das folhas amarelas.
Estende uma coberta sobre o espinho; e tinge-o com a cor do sangue.
Ao jasmim dá quatro pétalas e põe na cabeça da tulipa um gorro vermelho.
Depõe uma coroa de ouro sobre a testa do narciso; e deixa cair pérolas de orvalho dentro do seu santuário.
À idéia de Deus a mente peleja em vão, a razão sucumbe; mercê de Deus, o céu gira, a terra cambaleia.
Desde o dorso do peixe até a lua, cada átomo é uma testemunha do seu Ser.
Tanto as profundezas da terra como as culminâncias do céu prestam-lhe sua homenagem particular.
Deus produziu o vento, a terra, o fogo e o sangue, e por eles anunciou o seu segredo.
Tomou do barro, amassou-o com água e, depois de quarenta manhãs, colocou nele o espírito que vivifica o corpo.
Deus deu-lhe inteligência para que ele pudesse ter o discernimento das coisas.
Quando viu que a inteligência tinha discernimento, deu-lhe conhecimento, para que ele pudesse pesar e ponderar. Mas quando o homem entrou na posse das suas faculdades, confessou sua impotência e foi dominado pelo assombro, ao passo que seu corpo se entregou a atos exteriores. Amigos ou inimigos, todos inclinam a cabeça sob o jugo que Deus, em sua sabedoria, impõe; e, o que é surpreendente, ele nos vigia a todos.
No princípio dos séculos, Deus usou as montanhas como pregos para fixar a Terra; e lavou o rosto da Terra com a água do Oceano. Em seguida, colocou a Terra no lombo de um touro, o touro num peixe, e o peixe no ar. Mas, em que descansava o ar? Em nada. Mas nada é nada — e tudo o que é nada. Admira, pois, as obras do Senhor, embora Ele mesmo as considere nada. E, visto que só existe a sua Essência, é certo que não há nada senão Ele. O seu trono está sobre as águas, e o mundo está no ar. Mas deixa as águas e o ar, pois tudo é Deus; o trono e o mundo são apenas um talismã. Deus é tudo, e as coisas só têm valor nominal; o mundo visível e o mundo invisível são apenas Ele mesmo.
Não há ninguém senão Ele. Infelizmente, porém, ninguém pode vê-lo. Os olhos são cegos, ainda que o mundo seja alumiado por um sol brilhante. Se te fosse possível vislumbrá-lo, perderias o juízo, e se o visses completamente perder-te-ias a ti.
Todos os homens que têm consciência da própria ignorância arregaçam a fralda das vestes e dizem, sinceros: “Ó tu, que não te deixas ver, embora nos faças conhecer-te, todo mundo é tu, e ninguém senão tu é manifesto. A alma se esconde no corpo, e tu te escondes na alma. Ó tu, que estás escondido naquilo que se esconde, és mais do que tudo. Todos se vêem em ti e te vêem em tudo. Visto que a tua morada está cercada de guardas e sentinelas, como poderemos aproximar-nos da tua presença? Nem a mente nem a razão têm acesso à tua essência, e ninguém conhece teus atributos. Por seres eterno e perfeito, estás sempre confundindo o sábio. Que mais poderemos dizer, se não podes ser descrito?
Ó meu coração, se desejas chegar ao princípio da compreensão, caminha com cuidado. Para cada átomo há uma porta diferente, e para cada átomo há um caminho diferente que conduz ao Ser misterioso de que estou falando. Para nos conhecermos precisamos viver uma centena de vidas. Mas precisas conhecer a Deus por Ele mesmo e não por ti; é Ele que abre o caminho que conduz a Ele, não a sabedoria humana. O conhecimento d’Ele não está na porta dos retóricos. O conhecimento e a ignorância são neste caso a mesma coisa, pois não explicam nem descrevem. As opiniões dos homens sobre isso surgem apenas na imaginação deles; e é absurdo tentar deduzir alguma coisa do que dizem: bem ou mal, eles o disseram de si mesmos. Deus está além do conhecimento e além da evidência, e nada pode dar idéia da sua Sagrada Majestade.
Ó vós, que dais valor à verdade, não procureis um símile; a existência desse Ser sem igual não admite nenhum. Uma vez que não lhe compreenderam a mais mínima partícula, os profetas e os mensageiros celestes inclinaram a testa até o pó, dizendo: “Não te conhecemos como realmente deves ser”.
Quem sou eu, pois, para vangloriar-me de conhecê-lo? Ó filho ignorante do primeiro homem, o califa de Deus na terra, forceja por participar do conhecimento espiritual de teu pai. Todas as criaturas que Deus arranca do nada para a sua existência prostram-se diante dele. Quando quis criar Adão, fê-lo sair de trás de uma centena de véus, e disse-lhe: “Ó Adão, todas as criaturas me adoram; adorado por tua vez”. O único que fugiu a essa adoração foi transformado de anjo em demônio. Amaldiçoado, não teve conhecimento do segredo. Enegreceu-se-lhe o rosto, e ele disse a Deus: “Ó tu, que possuis a independência absoluta, não me desampares”.
Respondeu-lhe o Altíssimo:
“Ó tu, que estás amaldiçoado, sabe que Adão é, ao mesmo tempo, meu administrador e rei da natureza. Caminha hoje diante dele e amanhã queima para ele o ispand”.
Quando a alma se juntou ao corpo fez parte do todo; nunca houve tão maravilhoso talismã. Como a alma tinha uma porção do que é superior e o corpo uma porção do que é inferior, formavam uma mistura de barro pesado e espírito puro. Por essa mistura, tornou-se o homem o mais surpreendente dos mistérios. Não conhecemos nem compreendemos coisa alguma do nosso espírito. Queres dizer alguma coisa sobre isso? Seria melhor que te calasses. Muitos conhecem a superfície deste mundo, mas nada entendem das suas profundidades; e o mundo visível é o talismã que o protege. Mas esse talismã de obstáculos corpóreos acabará se quebrando. Encontrarás o tesouro quando o talismã desaparecer; a alma se manifestará quando o corpo for posto de lado. Mas tua alma é outro talismã; é outra substância deste mistério. Percorre, pois, o caminho que eu te indicar, mas não peças explicações.
Neste vasto oceano, o mundo é um átomo, e o átomo, um mundo. Quem sabe o que vale mais aqui, a cornalina ou o seixo?
Arriscamos nossa vida, nossa razão, nosso espírito, nossa religião, para compreender a perfeição de um átomo. Costura os teus lábios e nada perguntes sobre o empíreo ou o trono de Deus. Ninguém conhece realmente a essência do átomo — pergunta a quem quiseres. Os Céus são como uma cúpula às avessas, sem estabilidade, que se move e não se move ao mesmo tempo. Um está perdido na contemplação desse mistério — é véu sobre véu; outro é como a figura pintada na parede, e outro só consegue morder o dorso da própria mão.
Pensa nos que entraram no caminho do Espírito. Reflete no que aconteceu a Adão; calcula os anos que ele passou a lastimar-se. Contempla o dilúvio de Noé e tudo o que esse patriarca sofreu nas mãos dos maus. Considera Abraão, cheio do amor a Deus: sofreu torturas e foi lançado ao fogo. Vê o desventurado Ismael, oferecido em sacrifício pelo amor divino. Volta-te para Jacó, que ficou cego de tanto chorar pelo filho. Olha para José, admirável tanto no poder como na escravidão, no poço e na prisão. Lembra-te do infeliz Jó, estendido no chão, presa de vermes e lobos. Pensa em Jonas, que, tendo-se desviado do Caminho, foi transferido da lua para a barriga do peixe. Acompanha Moisés desde o nascimento: uma caixa serviu-lhe de berço, e o faraó o exaltou. Repara em Davi, que fez para si um peito de armas e cujos suspiros derreteram o ferro como se fosse cera. Atenta para Salomão, cujo império foi senhoreado por um djim. Não te esqueças de Zacarias, cujo amor a Deus era tão ardente que ele permaneceu em silêncio quando o mataram; e João Batista, desprezado perante o povo, e que teve a cabeça posta numa bandeja. Pasma diante do Cristo ao pé da cruz, quando se salvou das mãos dos judeus. E, finalmente, pondera em tudo o que o Chefe dos Profetas sofreu com os insultos e injúrias dos maus.
Depois disso, achas que será fácil chegares ao conhecimento das coisas espirituais? Significa nada mais e nada menos do que morrer para tudo. Que posso dizer mais, se não há mais nada a dizer, e não sobrou um rosa sequer na roseira! Ó Sabedoria! Não és mais que uma criança que mama; e a razão dos velhos e experientes se desgarra nesta busca. Como serei eu, néscio, capaz de chegar à Essência? E ainda que chegue, como serei capaz de transpor-lhe a porta? Ó Sagrado Criador! Vivifica-me o espírito! Crentes e descrentes estão igualmente mergulhados no sangue, e minha cabeça gira como os céus. Não estou desesperançado, mas estou impaciente.
Meus amigos! Somos vizinhos uns dos outros; eu quisera repetir-vos meu discurso dia e noite, para que não deixásseis, nem por um momento, de ansiar por sair à procura da Verdade.
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