domingo, 27 de março de 2011

A Subida ao Monte Carmelo II e III

S.J.da CRUZ-(A Subida ao Monte Carmelo)

CAPÍTULO II Explicação do que é a noite escura pela qual passa a alma para alcançar a união divina.

EM UMA NOITE ESCURA

1. A purificação que leva a alma à união com Deus pode receber a denominação de noite por três razões. A primeira, quanto ao ponto de partida, pois, renunciando a tudo o que possuía, a alma priva-se do apetite de todas as coisas do mundo, pela negação delas. Ora, isto, sem dúvida, constitui uma noite para todos os sentidos e todos os apetites do homem. A segunda razão, quanto à via a tomar para atingir o estado da união. Esta via é a fé, noite verdadeiramente escura para o entendimento. Enfim, a terceira razão se refere ao termo ao qual a alma se destina, — termo que é Deus, (ser incompreensível e infinitamente acima das nossas faculdades – NT: palavras tomadas da “edição príncipe”) e que, por isso mesmo, pode ser denominado uma noite escura para a alma nesta vida. Estas três noites hão de passar pela alma, ou melhor, por estas três noites há de passar a alma a fim de chegar à divina união.

2. No Livro de Tobias são elas figuradas pelas três noites que, em obediência ao Anjo, o jovem Tobias deixou passar antes de se unir à esposa. O Anjo Rafael ordenou-lhe que queimasse, durante a primeira noite, o coração do peixe, símbolo de um coração afeiçoado e preso às coisas criadas. A fim de começar a elevar-se a Deus deve-se, desde o início, purificar o coração no fogo do amo divino e aí deixar consumir-se tudo o que é criatura. Esta purificação põe em fuga o demônio que tem poder sobre a alma apegada às coisas temporais e corporais.

3. Na segunda noite o Anjo disse a Tobias que seria admitido na companhia dos santos Patriarcas, que são os Pais da fé. A alma, do mesmo modo, após passar a primeira noite figurada pela privação de todos os objetos sensíveis, logo penetra na segunda noite. Aí repousa na solidão da fé que exclui, não a caridade, mas todas as notícias do entendimento; pois, como adiante diremos, a fé não cai sob os sentidos.

4. Afinal, durante a terceira noite, foi prometida a Tobias a bênção. Esta bênção é o próprio Deus que, pela segunda noite — a da fé — se comunica à alma de forma tão secreta e íntima, que se torna uma outra noite para ela. E, como veremos depois, esta última comunicação se realiza numa obscuridade mais profunda que a das outras duas noites. Passada esta terceira noite, — que é quando se acaba de fazer a comunicação de Deus ao espírito, ordinariamente em grande treva para a alma, — logo se segue a união com a esposa, que é a Sabedoria de Deus. O Anjo disse a Tobias que após a terceira noite se unisse com a esposa no temor do Senhor, para significar que quando o temor é perfeito o amor divino também o é, e a transformação da alma em Deus por amor logo se opera.

5. Para compreensão, vamos explicar com clareza cada uma dessas noites; observamos, porém, que as três são uma só noite dividida em três partes. A primeira noite — a dos sentidos — pode ser comparada ao crepúsculo: momento em que já não mais se distinguem os objetos entre si. A segunda noite — a da fé — assemelha-se à meia-noite, quando a obscuridade é total. A terceira, finalmente, comparada ao fim da noite, e que dissemos ser o próprio Deus, precede imediatamente a luz do dia.

CAPITULO III - Declara a primeira causa desta noite, que consiste na privação do apetite em todas as coisas, e dá a razão por que se denomina "noite".

1. Damos aqui o nome de noite à privação do gosto no apetite de todas as coisas. Com efeito, sendo a noite a privação da luz, e conseqüentemente de todos os objetos visíveis, ficando a potência visual às escuras e sem nada, assim podemos chamar noite para a alma à mortificação dos apetites : pois a privação de todos eles a deixa na obscuridade e no vazio. A potência visual por meio da luz se satisfaz e emprega nos objetos, que não mais se vêem quando esta se extingue; de modo análogo a alma por meio do apetite se deleita e satisfaz nas coisas saboreadas pelas suas potências ; uma vez apagado, ou por melhor dizer, mortificado o apetite, a alma deixa de satisfazer-se no gosto de todas as coisas e fica, segundo o mesmo apetite, às escuras e no vazio.

2. Ponhamos exemplo em todas as potências (NT: com sentido de sentidos). Quando a alma priva o seu apetite no gosto de tudo quanto pode deleitar o sentido auditivo, permanece às escuras e no vazio quanto a esta potência. Em renunciando ao gosto nas coisas que podem agradar ao sentido da vista, fica igualmente, segundo este, às escuras e no vazio. Em negando ao sentido do olfato toda a suavidade que lhe advém dos olores, do mesmo modo se põe na obscuridade e no vazio relativamente a esta potência: e se renunciar ao sabor de todos os manjares que podem satisfazer ao paladar, também permanece, quanto a este sentido, às escuras e sem nada. Finalmente mortificando-se em todos os deleites e contentamentos que pode receber quanto ao sentido do tato, do mesmo modo fica a alma, segundo esta potência, na obscuridade e no vazio. Por conseguinte, a alma renunciando e afastando de si o gosto de todas as coisas, mortificando nelas o seu apetite, está às escuras como de noite, o que não é outra coisa senão um vazio em relação a tudo.

3. A razão disto, segundo os filósofos, é o assemelhar-se a alma, no momento em que Deus a une ao corpo, a uma tábua rasa-, na qual nada se houvesse gravado; nenhum meio natural tem de adquirir qualquer conhecimento (gnosis - episteme), a não ser através dos sentidos. É semelhante ao prisioneiro retido em um cárcere escuro, onde nada distingue, com exceção do que pode ser entrevisto pelas janelas da prisão; se não olhar por elas, nada verá. Deste modo, se a alma nada percebesse pelos sentidos — que são as janelas da prisão — nada poderia perceber por outro meio.

4. Renunciar às noções que vêm dos sentidos e rejeitá-las é, evidentemente, colocar-se na obscuridade e no vazio, pois, repetimos, segundo as leis da natureza, a luz não lhe pode chegar por outro meio. Porque, embora a alma não possa deixar de ouvir, ver, cheirar, gostar e sentir, todavia, se recusa usar destes meios, e não se embaraça com eles, é para ela a mesma coisa do que se não visse, não ouvisse, etc. Assim quem fecha os olhos fica tão às escuras como o cego privado da vista. David, a este respeito, diz: «Sou pobre e vivo em trabalhos desde a minha mocidade» (Sl 87, 15). No entanto, está claro que era rico; mas dizia-se pobre porque sua vontade estava livre das riquezas, e tão absoluto era o seu desprendimento como se fosse, de fato, pobre. Ao contrário, se o fosse realmente sem o ser pela vontade, não seria verdadeiramente pobre, pois a alma estaria rica e cheia no apetite. Com razão, pois, dizemos ser esta desnudez noite para a alma. Ora, não pretendemos falar aqui da pobreza material que não despoja o coração ávido dos bens deste mundo; mas nos ocupamos da desnudez do gosto e apetite, que deixa a alma livre e vazia de tudo, mesmo possuindo muitas riquezas. Efetivamente, não são as coisas deste mundo que ocupam a alma nem a prejudicam, pois lhe são exteriores, mas somente a vontade e o apetite que nela estão e a inclinam para estes mesmos bens.

5. Esta primeira espécie de noite, como depois diremos, relaciona-se com a parte sensível do homem, e é uma das duas de que falamos, pela qual há de passar a alma para chegar à união.

6. Vamos explicar agora como convém à alma sair de sua morada, na noite escura dos sentidos, a fim de alcançar a união divina.

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