sexta-feira, 25 de março de 2011

O Segundo Vale ou o Vale do Amor

A Conferência dos Pássaros-Farid Ud-Din Attar


A Poupa continuou:

“O vale seguinte é o Vale do Amor. Para entrar nele é mister ser fogo flamejante — como o direi? O próprio homem precisa ser fogo. O rosto do amante há de estar inflamado, ardente e impetuoso como o fogo. O verdadeiro amor não conhece reflexões tardias; com o amor, o bem e o mal deixam de existir.

“Mas quanto a vós, negligentes e descuidados, este discurso não vos dirá nada, vossos dentes nem sequer o tocarão. Uma pessoa leal arrisca o dinheiro que tem à mão, arrisca a própria cabeça para estar unida ao amigo. Outras se contentam em prometer o que farão por ti amanhã. Se aquele que enveredar por este caminho não se empenhar total e completamente, nunca se livrará da tristeza e da melancolia que o acabrunham. Enquanto não atinge a meta, o falcão mostra-se agitado e aflito. Se for arremessado à praia pelas ondas, o peixe lutará por retornar à água.

“Neste vale, o amor é representado pelo fogo, e a razão, pela fumaça. Quando chega o amor, a razão desaparece. A razão não pode viver com a loucura do amor; o amor não tem nada que ver com a razão humana. Se possuíres a visão interior, os átomos do mundo visível ser-te-ão manifestados.

Mas se vires as coisas com os olhos da razão comum, jamais compreenderás quão necessário é amar. Só o homem posto à prova e livre pode senti-lo. Quem empreende esta jornada deveria ter mil corações para poder sacrificar um a cada momento.”

Um “khoja” amoroso

Um khoja vendeu quanto possuía — móveis, escravos, tudo, só para comprar cerveja de um jovem cervejeiro. Ficou completamente louco de amor pelo cervejeiro. Vivia com fome, porque, se lhe dessem pão, vendia-o para comprar cerveja. Afinal, alguém lhe perguntou:

“Que amor é esse que te reduz a tão lamentável estado? Conta-me o segredo!”

“O amor é tal”, replicou ele, “que venderás a mercadoria de uma centena de mundos para comprar cerveja. Enquanto não o compreenderes, não experimentarás o verdadeiro sentimento do amor.”

Uma história de Majnun

Os pais de Laïla recusavam-se a deixar Majnun aproximar-se das suas tendas. Porém Majnun, ébrio de amor, pediu emprestada uma pele de carneiro a um pastor do deserto, onde a tribo de Laïla armara suas tendas. Abaixou a cabeça, vestiu a pele e disse ao pastor:

“Em nome de Deus, deixa que eu me arraste no meio dos teus carneiros; depois, passa com o rebanho diante da casa de Laïla, para que eu possa talvez sentir-lhe o suave perfume e, escondido nesta pele, excogitar alguma coisa”.

O pastor satisfez ao pedido de Majnun, e, enquanto passavam pela tenda da moça, este a viu e desmaiou. O pastor levou-o dali para o deserto e jogou-lhe água no rosto a fim de esfriar-lhe a ardência do amor.
Outro dia, estava Majnun no deserto com alguns companheiros, quando um deles lhe perguntou:
“Como podes tu, um nobre, andar nu por aí? Se quiseres, arranjar-te-ei algumas roupas”.

Majnun recusou:

“Nenhum traje que eu possa usar é digno da minha amiga, de modo que, para mim, não há nada melhor do que o meu corpo nu ou uma pele de carneiro. Ela é para mim um ispand, que afugenta o mau-olhado. Majnun envergaria de bom grado vestidos de seda e panos de ouro, mas prefere esta pele de carneiro, por cujo intermédio conseguiu uma visão de Laïla”.

O amor dá cabo da tua prudência. O amor modifica tua atitude. Amar é desistir da vida comum e renunciar aos prazeres vulgares.

Um mendigo apaixonado por Ayaz

Um pobre dervixe apaixonou-se, de uma feita, por Ayaz, e a notícia logo se espalhou. Quando Ayaz passava a cavalo pela rua, recendendo a almíscar, esse libertino espiritual, que se mantinha à espreita, corria para vê-lo, quedando-se a contemplá-lo como o jogador de pólo crava os olhos na bola. Finalmente, chegou aos ouvidos de Mahmud a história do mendigo apaixonado por Ayaz. Um belo dia, quando Ayaz cavalgava com o sultão, este último se deteve, baixou os olhos para o dervixe e viu que a alma de Ayaz era como o grão de cevada, e o rosto do homem, como a bola de massa que o encerra.

Viu que as costas do mendigo estavam curvadas como um taco de pólo e que a cabeça lhe girava para todos os lados ao mesmo tempo, como a própria bola do jogo de pólo. Disse Mahmud:

“Miserável mendigo, esperas beber na taça do sultão?”

“Embora me chameis de mendigo”, replicou o dervixe, “no jogo do amor não sou inferior a vós. O amor e a pobreza andam juntos. Sois o soberano, e vosso coração é luminoso; mas para o amor faz-se mister um coração ardente como o meu. O vosso amor é trivial. Eu sofro a dor da ausência. Estais com o amado; mas no amor cumpre saber suportar a dor da ausência.”

Voltou o sultão:

“Ó tu, que te retiraste da existência comum, o amor é para ti um jogo de pólo?”

“É”, confirmou o mendigo, “porque a bola está sempre em movimento, como eu, e eu estou como a bola. A bola e eu temos uma cabeça que gira, embora não tenhamos mãos nem pés. Podemos falar sobre o sofrimento que o taco nos causa; mas a bola é mais feliz do que eu, pois o pónei a toca, de vez em quando, com os pés. A bola recebe os golpes do taco no corpo, mas eu os sinto no coração.”

“Pobre dervixe!”, disse o sultão, “tu te gabas da tua pobreza, mas onde está a prova?”

“Se sacrifico tudo pelo amor”, replicou o dervixe, “eis aí uma prova da minha pobreza espiritual. E se um dia, ó Mahmud, tiverdes a experiência do verdadeiro amor, sacrificai por ela a vida; se não o fizerdes, não tereis o direito de falar de amor.”

Isso dizendo, morreu, e o mundo escureceu para Mahmud.

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