A Conferência dos Pássaros - Farid Ud-Din Attar
A Poupa continuou:
“Cruzarás depois o Vale da Unidade, onde tudo é partido em pedaços e, em seguida, unificado. Aqui, todas as cabeças que se erguem saem da mesma gola. Embora te pareça ver muitos seres, na realidade só existe um — todos fazem um, completo na unidade. Além disso, o que vês como unidade não difere do que te parece uma soma. E como o Ser a que me refiro está além da unidade e da soma, cessa de pensar na eternidade como em antes e depois; e como essas duas eternidades desapareceram, deixa de falar nelas.
Quando tudo o que é visível estiver reduzido a nada, que sobrará para se contemplar?”
A resposta de um idiota de Deus
Alguém perguntou a um homem de entendimento:
“Que é o mundo? A que se pode comparar?”
Ele replicou:
“Este mundo, composto de horrores e crime, é como uma palmeira de cera enfeitada de uma centena de cores. Espremida, converte-se numa massa de cera; por conseguinte, as cores e formas que admiras não valem um óbolo. Havendo unidade não pode haver dualidade; nem o “eu” nem o “tu” têm importância.
“Mas de que valem minhas palavras, embora subam do fundo da minha alma, se não as remóis? Se caíres no oceano da vida exterior, como a perdiz cujas asas e penas já não podem sustentá-la, nunca deixes de pensar em como chegar à praia.”
O xeque Bu Ali Dakkah
Uma velha ofereceu a Bu Ali uma moeda de ouro, dizendo:
“Aceita isto de mim”.
“Só posso aceitar coisas de Deus”, retrucou ele.
“Onde aprendeste a ver em dobro?”, tornou a velha. “Não és homem de poder para atar e desatar. Se não fosses vesgo, verias várias coisas ao mesmo tempo?”
Não há Caaba nem Pagode. Aprende de minha boca a verdadeira doutrina — a eterna existência do Ser. Não devemos ver ninguém mais senão ele. Estamos nele, por ele e com ele. Também podemos estar fora desses estados. Quem não estiver imerso no Oceano da Unidade não é digno da raça dos homens.
Dia virá em que o sol retirará o véu que o cobre. Enquanto estiveres dividido, o bem e o mal surgirão em ti; mas quando te perderes no sol da essência divina, eles serão ultrapassados pelo amor. Enquanto te retardares na estrada, serás detido por faltas e fraquezas. Ainda não te deste conta de que em teu corpo há convencimento, vaidade, presunção, egoísmo e outras coisas sujas? Posto que a serpente e o escorpião pareçam mortos dentro de ti, estão apenas adormecidos; e se alguma coisa os tocar, despertarão com a força de cem dragões. Em cada um de nós há um inferno de serpentes. Se te colocares a salvo dessas criaturas imundas, poderás ficar sossegado; senão, elas te picarão até na poeira do túmulo e até o dia da prestação de contas.
E agora, ó Attar, deixa os teus discursos metafóricos e volta à descrição do misterioso Vale da Unidade.
A Poupa continuou:
“Quando penetrar nesse vale, o viajante espiritual desaparecerá e perder-se-á de vista porque o Ser Único se manifestará; permanecerá em silêncio porque o Ser falará.
“A parte se transformará no todo, ou melhor, não haverá nem parte nem todo. Na Escola do Segredo verás milhares de homens dotados de conhecimento intelectual, com os lábios separados, em silêncio. Que é aqui o conhecimento intelectual? Detém-te na soleira da porta como uma criança cega. Quem descobre alguma coisa desse segredo desvia o rosto do reino dos dois mundos. O Ser de que falo não existe separadamente; todos são esse Ser, a existência e a inexistência são esse Ser.”
A prece de Lokman de Sarkhasi
— Disse Lokman de Sarkhasi:
“Ó Deus, estou velho, minha mente perturbou-se; desviei-me do Caminho. A um velho escravo dá-se carta de alforria. No vosso serviço, ó meu rei, meus cabelos negros se tornaram brancos como a neve. Sou um escravo em estado de profunda depressão; dai-me agora a carta de alforria”.
Uma voz do mundo interior replicou:
“Tu, que foste especialmente admitido ao santuário, sabes que aquele que deseja livrar-se da escravidão precisa primeiro descartar-se da razão e não se ocupar de cuidados e ansiedades”.
“Ó meu Deus”, tornou Lokman, “só vos desejo a vós, e sei que não devo ceder à imaginação, aos cuidados, à ansiedade.”
Depois que Lokman renunciou a essas coisas, disse:
“Agora não sei o que sou. Não sou escravo, mas que sou eu? Minha escravidão terminou, mas minha liberdade não aconteceu: não tenho alegria nem tristeza no coração. Careço de qualidade, embora não tenha sido despojado dela. Sou um contemplativo e, todavia, não possuo contemplação. Não sei se tu és eu ou se eu sou tu; fui reduzido a nada em ti e a dualidade se perdeu”.
Um apaixonado salva a amada das águas
Uma jovem caiu no rio e seu amante atirou-se à água com a intenção de salvá-la. Quando ele se avizinhou, a moça perguntou:
“Por que arriscas a vida por minha causa?”
E ele respondeu:
“Para mim não existe outra pessoa senão tu. Quando estamos juntos eu realmente sou tu e tu és eu. Nós dois somos um. Nossos corpos são um só, e isso é tudo”.
Quando desaparece a dualidade, encontra-se a unidade.
Outra história de Mahmud e Ayaz
Conta-se que, certa vez, Farouk e Masoud estavam presentes a uma revista do exército de Mahmud, que consistia num sem-número de elefantes, cavalos e soldados, de tal sorte que a terra se diria coberta de formigas e gafanhotos. Ayaz e Hassan acompanhavam Mahmud, que ia sentado, a cavaleiro de todos.
Enquanto o imenso exército marchava diante deles, o grande monarca desatou a língua e disse a Ayaz:
“Meu filho, todos esses elefantes, cavalos e homens, que eram meus, agora são teus, pois o amor que sinto por ti é tamanho que te vejo como um rei”.
Se bem essas palavras fossem proferidas pelo renomado Mahmud, Ayaz permaneceu indiferente e impassível; nem agradeceu ao rei, nem comentou o fato. Hassan, espantado, interpelou-o:
“Ayaz, um rei te honra, a ti, simples escravo, e nem sequer deixas transparecer o menor sinal de gratidão! Não te inclinaste nem te prostraste como prova de respeito!”
Ayaz pensou um pouco e respondeu:
“Devo dar duas respostas à tua censura: a primeira é que se eu, que não tenho estabilidade nem posição, quiser demonstrar minha devoção ao rei, só posso lançar-me ao pó diante dele numa espécie de humilhação, ou entoar-lhe os louvores com voz plangente. Entre fazer de mais ou de menos, o melhor é não fazer nada. O escravo pertence ao rei, e seu respeito ao soberano pressupõe-se. Quanto à honra que me faz este venturoso monarca, se os dois mundos lhe proclamassem os louvores, o testemunho deles jamais lhe igualaria o mérito. Se não procedo de maneira ostentosa e não faço protestos de fidelidade, é porque, na minha opinião, não sou digno de fazê-lo”.
Disse Hassan:
“Ó Ayaz, vejo agora que és reconhecido e digno de uma centena de favores”. Logo, acrescentou: “Dá-me agora a segunda resposta”.
Ayaz, porém, respondeu:
“Não posso falar livremente diante de ti, só poderei fazê-lo a sós com o rei. Não és mahram do segredo”.
O rei pediu a Hassan que os deixasse, e, quando já não havia “nós” nem “eu”, Ayaz disse:
“Quando o rei se digna a lançar os olhos sobre mim aniquila-me a existência com o fulgor dos seus raios. Visto que já não existo sob a luz do seu glorioso sol, como me prosternarei? Ayaz é sua sombra, perdido no sol do seu rosto”.
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