quinta-feira, 31 de março de 2011

A Subida ao Monte Carmelo IX e X

S.J.da CRUZ - (A Subida ao Monte Carmelo)

CAPÍTULO IX - Diz como os apetites mancham a alma e prova com testemunhos e comparações da Sagrada Escritura.

1. O quarto dano que fazem os apetites à alma é que a sujam e mancham, segundo o ensinamento do Eclesiástico: «Quem tocar o piche ficará manchado dele» ( Ecli 13, 1 ). Ora, tocar o piche é satisfazer com qualquer criatura o apetite de sua vontade. Nessa passagem da Sagrada Escritura compara o Sábio as criaturas com o piche; porque entre a excelência da alma e o que há de mais perfeito nas outras criaturas é maior a diferença que entre o fúlgido diamante ou fino ouro e o piche. E assim como o ouro ou diamante se caísse, aquecido, no piche ficaria disforme e besuntado, porquanto o calor derrete e torna mais aderente o piche, assim a alma, dirigindo o ardor de seus apetites para qualquer criatura, dela recebe, pelo calor do mesmo apetite, máculas e impureza. Existe ainda entre a alma e as criaturas corpóreas diferença maior do que há entre o licor mais límpido e a água mais lodosa; esse licor, sem dúvida, se turvaria se fosse misturado com a lama; deste modo se mancha e suja a alma que se apega à criatura, pois nisto se faz semelhante à mesma criatura. Assim como ficaria desfigurado o rosto mais formoso, com manchas de tisne, a alma, igualmente, que é em si muito perfeita e acabada imagem de Deus, fica desfigurada pelos apetites desregrados que conserva.

2. Jeremias, deplorando o estrago que os afetos desordenados produzem na alma, descreve primeiro a sua formosura, para em seguida declarar-lhe a fealdade: «Os seus cabelos, dizia, eram mais alvos que a neve, mais nítidos que o leite, mais vermelhos que o marfim antigo, mais formosos que a safira. Denegrida está a face deles mais do que os carvões, e não são conhecidos nas praças» ( Lam 4, 7-8 ). Por cabelos entendemos as afeições e os pensamentos da alma que são mais alvos que a neve, mais nítidos que o leito, mais vermelhos que o marfim antigo e mais formosos que a safira, quando estão de acordo com a vontade divina. Estas quatro qualidades representam a beleza e a excelência de todas as criaturas corporais; mas a alma e as suas ações lhes são muito superiores e eis por que é comparada aqui aos cabelos que são o ornamento da cabeça. Quando as suas ações são desregradas e dirigidas a fins contrários à lei de Deus, isto é, quando a alma se deixa absorver pelas criaturas, Jeremias assegura que o seu rosto se torna mais negro que o carvão.

3. Todos estes danos, e outros ainda maiores, causam na beleza interior da alma os apetites desordenados de coisas do século. Chegam a tal ponto, que se tivéssemos de tratar expressamente da abominável e suja figura que nela deixam, não acharíamos coisa, por mais manchada e imunda, ou lugar tão cheio de teias de aranha e repteis repelentes, nem podridão de corpo morto, a que pudéssemos compará-la. Porque, embora a alma desordenada permaneça, quanto à sua substância e natureza, tão perfeita quanto no momento em que Deus a tirou do nada, todavia, na parte racional do seu ser, torna-se feia, obscura, manchada e exposta a todos estes males e ainda a grande número de outros. Uma só destas inclinações desordenadas, ainda mesmo não sendo matéria de pecado mortal, é suficiente para manchar, enfear e tornar a alma incapaz de chegar à união perfeita com Deus. Qual não será, pois, a fealdade de uma alma completamente dominada pelas próprias paixões e entregue a todos os seus apetites? Quão afastada estará de Deus e de sua infinita pureza!

4. A língua não pode dizer, nem a inteligência conceber, a multiplicidade de impurezas que os diversos apetites acumulam na alma. Se fosse possível dar a entender, seria admirável, digna de compaixão, ver cada apetite apor na alma o sinal do seu caráter e aí imprimir as suas próprias manchas e fealdades, e como uma só desordem de razão pode conter inúmeras manchas de intensidades diferentes. Porque assim como a alma do justo possui em uma só perfeição, que é a retidão da alma, grande número de sublimes virtudes e inumeráveis dons preciosos, cada um com seu encanto particular, segundo o número e a diversidade dos impulsos de amor que a levam para Deus, assim a alma desordenada possui em si lamentável variedade de manchas e baixezas em relação à multiplicidade das inclinações que a fazem pender para as criaturas.

5. Ezequiel nos oferece exata imagem dessa verdade quando diz que Deus lhe mostrou, pintadas nos muros interiores do templo, todas as figuras dos repteis que rastejam pela terra, assim como todas as abominações dos animais impuros ( Ez 8, 10 ). Deus diz ao Profeta: «Por certo, filho do homem, que tu vês o que fazem nas trevas, o que cada um deles pratica no secreto da sua câmara? E o Senhor lhe ordenou, em seguida, que entrasse mais adentro a fim de ver abominações ainda maiores. Ezequiel, então, percebeu umas mulheres assentadas, chorando a Adônis, deus dos amores» ( Ez 8, 14 ). Afinal o Senhor lhe ordenou que entrasse ainda mais adentro e o Profeta viu vinte e cinco velhos que tinham as costas voltadas para o templo( Ez 8, 16 ).

6. Esses diferentes repteis e animais imundos, pintados na primeira parte do templo, são os pensamentos e concepções que o entendimento faz das coisas baixas deste mundo e, em geral, de todas as criaturas. Ora, estas coisas, tais quais são, pintam-se no santuário da alma, quando esta embaraça nelas o entendimento, que é o seu primeiro aposento. Essas mulheres sentadas mais adentro, no segundo aposento do templo, que choram o deus Adônis, representam os apetites localizados na segunda potência da alma, a vontade. As suas lágrimas exprimem esses desejos aos quais a vontade está presa, isto é, os repteis já representados no entendimento. Enfim, os homens no terceiro aposento são o símbolo das imaginações e fantasmas de criaturas que a memória, terceira potência da alma, guarda e revolve em si. Foi dito que eles tinham as costas voltadas para o templo porque a alma, cujas potências são voluntária e resolutamente dirigidas para alguma criatura, volta, por assim dizer, as costas ao templo de Deus que é a reta razão, a qual não admite em si coisa alguma de criatura.

7. O que acabamos de dizer é suficiente para dar alguma idéia da feia desordem produzida pelos apetites na alma. Este assunto seria interminável se tratássemos particularmente da fealdade que causam na mesma alma as imperfeições, bem como da que produzem os pecados veniais, mais considerável, e enfim da total deformidade dos apetites de pecados mortais. Se fôssemos enumerar toda a variedade e multidão dessas três espécies de apetites, não haveria entendimento angélico que bastasse para chegar a compreender semelhantes coisas. Contento-me em dizer, e isto vem a propósito do nosso assunto, que qualquer apetite, ainda mesmo de mínima imperfeição, mancha e suja a alma.

CAPÍTULO X - Os apetites entibiam a alma e a enfraquecem na virtude.

1. Os apetites entibiam e enfraquecem a alma, tirando-lhe a força de progredir e perseverar na virtude: tal é o quinto prejuízo que lhe causam. Com efeito, se a força do apetite é repartida, o seu vigor se torna menos intenso do que se fosse concentrado inteiro em um só ponto; quanto mais numerosos são os objetos em que se reparte, tanto menos intensidade de afeto emprega em cada um deles. Verifica-se, assim, este axioma da filosofia: a força unida tem mais poder que a dividida. Por conseguinte, se a vontade gasta a sua energia em algo fora da virtude, necessariamente se tornará mais fraca na mesma virtude. A alma cuja vontade se perde em ninharias assemelha-se à água que, encontrando saída em baixo para escoar-se, não sobe para as alturas e perde assim sua utilidade. O patriarca Jacob compara seu filho Rubens à água derramada porque Ele dera curso aos seus apetites cometendo um pecado secreto: «Derramaste-te como a água: não cresças» ( Gn 49, 4 ). Isto significa: porque estás derramado em teus desejos, como a água que se escoa, não crescerás em virtude. Se descobrimos um vaso de água quente, esta perde facilmente o calor; as essências aromáticas, quando expostas ao ar, se evaporam gradualmente, perdendo a fragrância e a força do perfume; a alma, do mesmo modo, não concentrando os seus apetites só em Deus, perde o ardor e o vigor da virtude. David possuía perfeita compreensão desta verdade quando se dirigia ao Senhor nestes termos: «Guardarei para vós toda a minha fortaleza» ( Sl 58, 10 ), isto é, recolherei toda a força das minhas afeições somente para Vós.

2. Os apetites enfraquecem a virtude da alma, como as vergônteas que, crescendo em torno da árvore, lhe sugam a seiva e a impedem de dar frutos em abundância. O Senhor, no santo Evangelho, diz: «Ai das que estiverem pejadas e das que criarem naqueles dias» ( Mt 24, 19 ). Esta é a figura dos apetites não mortificados que consomem pouco a pouco a virtude da alma e se desenvolvem em detrimento dela, como as vergônteas que tanto prejudicam à árvore. Nosso Senhor também nos dá este conselho: «Estejam cingidos os vossos lombos» ( Lc 12, 35 ), que significam os apetites. Também se parecem estes com as sanguessugas sempre chupando o sangue das veias; é o nome que lhes dá o sábio, quando diz: sanguessugas são as filhas, isto é, os apetites: sempre dizem: dá-me, dá-me ( Prov 30, 15 ).

3. Evidentemente, os apetites não trazem à alma bem algum, mas, ao contrário, roubam-lhe o que possui. Se ela os não mortificar, irão os apetites adiante até fazerem à alma o que, como alguns dizem, fazem à mãe as viborazinhas que a mordem e matam à medida que crescem em seu ventre, conservando a própria vida às expensas da de sua mãe. Assim, os apetites não mortificados chegam a ponto de matar na alma a vida divina, porque a mesma alma não os matou primeiro, mas deixou-os viver em si. Diz, com razão, o Eclesiástico: «Afastai de mim a concupiscência (pleonexia, epithymia) da carne» ( Ecli 23, 6 ).

4. Mesmo que não cheguem a tanto, é grande lástima considerar em que estado deixam a pobre alma os apetites quando nela vivem, tornando-a infeliz consigo mesma, áspera para com o próximo, pesada e preguiçosa para as coisas de Deus. Porque não há humor maligno que tão difícil e pesado ponha um enfermo para caminhar, causando-lhe fastio para todo alimento, quanto o apetite de criaturas torna a alma triste e pesada para praticar a virtude. E assim, ordinariamente, sucede muitas almas não terem diligência e vontade para progredir na perfeição: e a causa disto são os apetites e afeições conservados e o não terem a Deus puramente por objeto.

1 comentário:

  1. Muito bom o texto. Uma verdadeiro tratado sobre a alma e a problemática dos apegos e das paixões, elucidadas por grandes homens do passado que experienciaram a Deus e a vida espiritual - vivida por antecipação(Allan Kardec).

    Estou olhando as muitas coisas postadas por aqui, mas já vou logo dizendo que antevejo aqui, quiçá, o melhor sítio de Espiritualismo da internet.

    Parabéns dim-dim!

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