sexta-feira, 25 de março de 2011

O quarto vale ou o Vale da Independência e do Alheamento

A Conferência dos Pássaros-Farid Ud-Din Attar

A Poupa prosseguiu:

“Depois vem o vale onde não há nem o desejo de possuir nem a vontade de descobrir. Nesse estado da alma sopra um vento frio, tão violento que, num ápice, devasta um espaço imenso: os sete oceanos não são mais que uma lagoa, os sete planetas, mera centelha, os sete céus, um cadáver, os sete infernos, gelo quebrado. Além disso, há uma coisa surpreendente, que foge à razão: uma formiga tem a força de cem elefantes, e cem caravanas se destroem enquanto um corvo enche o papo.
“Para que Adão pudesse receber a luz celestial, grande quantidade de anjos vestidos de verde se consumiram de tristeza. Para que Noé pudesse converter-se num carpinteiro de Deus e construir a arca, milhares de criaturas pereceram nas águas. Miríades de mosquitos precipitaram-se sobre o exército de Abradá para que o rei pudesse ser destronado. Milhares de recém-nascidos morreram para que Moisés pudesse ver a Deus. Milhares de pessoas cingiram o cinto cristão para que Cristo pudesse possuir o segredo de Deus. Milhares de corações e almas foram saqueadas para que Maomé pudesse subir, por uma noite, ao céu. Nesse vale nada que seja velho ou novo tem valor; podes agir ou não agir. Se visses um mundo inteiro ardendo até que os corações fossem reduzidos a simples shish kabab, seria apenas um sonho comparado com a realidade. Se miríades de almas caíssem neste oceano sem limites, seriam como uma gota de orvalho. Se o céu e a terra explodissem, feitos em partículas diminutas, seriam pouco mais que uma folha caída de uma árvore; e se tudo se aniquilasse, desde o peixe até a lua, encontrar-se-ia no fundo de um fosso a perna de uma formiga capenga? Se não subsistir vestígio algum de homens nem de djins, o segredo de uma gota d’água, a partir da qual tudo se formou, continuará sendo matéria de ponderação.”

O jovem que caiu num fosso

Na minha aldeia havia um jovem, belo como José, que caiu num fosso cuja terra desmoronou sobre ele. Quando o tiraram dali, estava em péssimo estado. Esse excelente jovem chamava-se Maomé e era querido de todos. Quando o viu, o pai gemeu e disse:

“Ó Maomé, és a luz dos meus olhos e a alma de teu pai. Ó meu filho, dize uma palavra a teu pai!”

O filho disse uma palavra e entregou a alma a Deus. E isso é tudo.

Ó tu, jovem discípulo no caminho do conhecimento espiritual, que és capaz de observar e ponderar, pensa em Maomé e Adão; pensa em Adão e nos átomos, no todo e nas partículas do todo; fala da terra e dos céus, das montanhas e do oceano; fala das fadas e dos deuses, dos homens e dos anjos, de cem mil almas puras; fala do momento penoso da entrega da alma; dize que cada indivíduo, alma e corpo, é nada. Se reduzires os dois mundos a pó e os joeirares cem vezes, que serão eles para ti? Serão como um palácio de pernas para o ar, e nada encontrarás na superfície da joeira.

Não é tão fácil atravessar esse vale quanto tu, na tua simplicidade, imaginas. Mesmo que o sangue do teu coração enchesse o oceano, serias apenas capaz de cumprir a primeira fase. Mesmo que tivesses de percorrer todos os caminhos do mundo, ainda te encontrarias no primeiro passo. Nenhum viajor já viu o limite desta jornada nem achou remédio para o amor. Se te detiveres, serás petrificado e poderás até morrer; se prosseguires no caminho, sempre para a frente, ouvirás, até a eternidade, o grito: “Continua”. Não podes ir nem ficar. Não é vantagem viver nem morrer.

Que proveito tiraste de tudo o que te aconteceu? Que ganhaste com as dificuldades que pudeste suportar? Pouco importa que tenhas ou não batido a cabeça. Ó tu que me ouves, silencia e trabalha ativamente.
Desiste das tuas metas inúteis e persegue as coisas essenciais. Ocupa-te o menos possível das coisas do mundo exterior, porém muito das coisas do mundo interior; se o fizeres, a ação correta superará a inação. Mas os que não encontram remédio no agir, é melhor que não façam nada, visto que deves saber quando agir e quando deixar de fazê-lo. Mas como saber o que não podes saber? E, no entanto, é possível agir como se deve, mesmo sem o saber. Esquece o que fizeste até agora, e procura ser independente e auto-suficiente, conquanto às vezes chores e às vezes jubiles. Nesse quarto vale o relâmpago do poder, que é o descobrimento dos teus próprios recursos, da auto-suficiência, flameja tanto que o calor consome cem mundos. E uma vez que centenas de mundos são reduzidos a pó, será acaso estranho que o teu também desapareça?

O astrólogo

Já viste um sábio estender uma tabuinha e cobri-la de areia para nela traçar figuras e desenhos, e colocar as estrelas e os planetas, e os céus e a terra? Às vezes faz uma predição dos céus, às vezes, da terra. Desenha também as constelações e os signos do zodíaco, indica o ascender e o declinar das estrelas, e disso deduz bons ou maus augúrios. Depois de fazer um horóscopo, de boa ou má fortuna, pega na tabuinha por um canto e espalha a areia, e é como se todos aqueles sinais e figuras nunca tivessem existido.

A superfície acidental deste mundo semelha a tabuinha. Se não tens força para resistir ao desejo das coisas superficiais do mundo, afasta-te dele e senta-te num canto. Homens e mulheres entram na vida sem nenhuma idéia do mundo interior ou exterior.

A mosca e o mel

Uma mosca à procura de mel avistou uma colméia no jardim. O desejo do mel colocou-a em tal estado que a tomaríeis por um Azrael. E ela gritou:

“Darei um óbolo a quem me ajudar a entrar nessa colméia”.

Alguém ficou com pena dela e, por um óbolo, ajudou-a a entrar. Mas, assim que ela entrou, suas patas ficaram grudadas no mel. Por mais que batesse as asas e se agitasse, as coisas só pioravam para ela, e a coitada se pôs a gemer:

“Isto é tirania, isto é veneno. Estou presa. Dei um óbolo para entrar e agora daria dois, com prazer, para sair”.

“Neste vale”, continuou a Poupa, “ninguém deve permanecer inativo, e só há de entrar nele depois de haver alcançado certo estádio de desenvolvimento. Este é o momento de trabalhar em vez de viver na incerteza e passar o tempo descuidadamente. Desperta da apatia, renuncia aos apegos internos e externos e cruza esse vale difícil; pois, se não renunciares a eles, tornar-te-ás mais descuidado que os adoradores de muitos deuses e nunca serás auto-suficiente.”

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