A Conferência dos Pássaros - Farid Ud-Din Attar
Depois do Vale da Unidade vem o Vale do Espanto e da Perplexidade, onde o viajante é presa da tristeza e da melancolia. Ali os suspiros são espadas, e cada respiração é um amargo suspiro. A noite e o dia surgem ao mesmo tempo. Ali há fogo, e, sem embargo disso, o homem se sente deprimido e desalentado. Como, em sua perplexidade, prosseguirá no caminho? Mas quem alcançou a unidade se esquece de tudo e se esquece de si. Se lhe perguntarem: “És ou não és? Tens ou não tens o sentimento da existência? Estás no centro ou na periferia? És mortal ou imortal?”, ele responderá com certeza:
“Nada sei, nada entendo, não tenho consciência de mim mesmo. Estou apaixonado, mas ignoro por quem. Meu coração está cheio e vazio de amor ao mesmo tempo”.
A princesa apaixonada pelo escravo
Um rei cujo império se estendia até os longínquos horizontes, tinha uma filha tão bela quanto a lua. Diante de sua formosura até as fadas se sentiam diminuídas. Seu queixo, em que se via uma covinha, parecia o poço de José, e as mechas de seus cabelos feriam uma centena de corações. As sobrancelhas eram arcos gêmeos, e, quando ela desferia suas flechas, o espaço entre ambas cantava em seu louvor. Os olhos, lânguidos como o narciso, atiravam espinhos dos cílios no caminho do sábio. O rosto era como o sol quando desvirginou a lua. O anjo Gabriel não conseguia despregar a vista das pérolas e rubis da sua boca. Um sorriso dos seus lábios secava a água da vida em quem a contemplava, mas que, ainda assim, implorava uma esmola dos mesmos lábios. Quem lhe vislumbrasse o queixo cairia de ponta-cabeça numa fonte de água fervente.
O rei também tinha um escravo, tão belo que a sol empalidecia e a luz da lua esmaecia em sua presença. Quando ele caminhava pelas ruas e pela praça do mercado, multidões se detinham para contemplá-lo.
Um dia, por acaso, a princesa viu o escravo e, num momento, o coração lhe escorregou das mãos. A razão desertou-a e o amor tomou conta dela. Sua alma, doce como Shirin, ficou amarga. Afastando-se das companheiras, pôs-se a pensar e, pensando e refletindo, começou a arder. Em seguida, chamou suas dez jovens damas de honra, excelentes músicas, que tocavam charamelas e flautas, cujas vozes não se distinguiam da voz dos rouxinóis e cujos cantares, dignos de Davi, despedaçavam a alma. Reunindo-as à sua volta, falou-lhes do seu estado, dizendo estar pronta para sacrificar o nome, a honra e a vida pelo amor daquele moço; pois quando alguém está profundamente apaixonado não presta para mais nada.
“Mas”, ajuntou, “se eu lhe falar do meu amor, ele, sem dúvida, fará alguma coisa impensada. Se se divulgar a notícia de que fui íntima de um escravo, nós dois, ele e eu, sofreremos. Por outro lado, se ele não me possuir, morrerei lastimando-me atrás da cortina do harém. Li uma centena de livros que tratam da paciência, e nem mesmo assim a adquiri. Que posso fazer? Tenho de encontrar um modo de gozar o amor desse esbelto cipreste, de sorte que o desejo do meu corpo se harmonize com o anseio de minha alma — e isso tem de ser feito à revelia dele.”
Disseram, então, as donzelas de voz melodiosa:
“Não sofras. Hoje à noite o traremos aqui, desconhecido de todos, e nem ele ficará sabendo coisa alguma”.
Pouco depois, uma das moças se abeirou, em segredo, do escravo e pediu-lhe, como por brincadeira, que fosse buscar duas taças de vinho. Deitou uma droga numa das taças e fê-lo beber. Ele adormeceu incontinenti, permitindo à jovem levar a cabo o seu plano, e o moço de peito de prata ficou sem notícias dos dois mundos.
Quando a noite chegou, as damas de honra foram, pé ante pé, até onde estava o escravo adormecido, colocaram-no numa liteira e conduziram-no à princesa. Em seguida, sentaram-no num trono de ouro e cingiram-lhe a cabeça com uma coroazinha de pérolas. À meia-noite, ainda meio drogado, ele abriu os olhos e viu um palácio lindo como um paraíso e, à sua volta, assentos de ouro. Alumiavam o lugar dez grandes velas perfumadas com âmbar, e um suave agáloco queimava em vasilhas. As donzelas puseram-se a cantar toadas tão doces que a razão disse adeus ao espírito e a alma, ao corpo. Logo, o sol do vinho circulou à luz das velas. Confuso diante da alegria do ambiente e ofuscado pela formosura da princesa, o moço perdeu o juízo. Já não se achava realmente neste mundo e tampouco no outro. Com o coração cheio de amor e o corpo possuído pelo desejo, em meio a tantas delícias, caiu em êxtase. Tinha o olhar cravado na beleza dela e os ouvidos presos ao som das flautas de bambu. Suas narinas absorviam o perfume do âmbar, e o vinho sabia-lhe na boca a fogo líquido. A princesa beijou-o, e ele derramou lágrimas de alegria, ao mesmo tempo que ela mesclava as suas às dele. Às vezes, ela lhe depositava beijos suaves nos lábios, às vezes sazonava-os com sal; às vezes, desmanchava-lhe os cabelos, às vezes se perdia nos olhos dele. Ele a possuiu; e assim passaram o tempo até que a aurora despontou no oriente. Quando o Zéfiro matutino suspirou, o jovem escravo entristeceu; mas as damas tornaram a adormecê-lo e levaram-no de volta aos seus aposentos.
Ao voltar a si, sem saber por quê, o moço de peito de prata principiou a chorar. Poder-se-ia dizer que tudo terminara e que, portanto, não valia a pena chorar. Ele rasgou as vestes, arrancou os cabelos, jogou terra na cabeça. Os que se achavam próximos perguntaram-lhe por que fazia tudo isso e o que ocorrera.
Ele respondeu:
“Não consigo descrever o que vi, e ninguém mais poderá vê-lo, senão em sonhos, pois o que me aconteceu não pode ter acontecido a ninguém. Nunca houve mistério mais assombroso”.
“Acorda, e conta-nos, pelo menos, uma das cem coisas que sucederam”, pediu outro.
E ele:
“Estou confuso, porque o que vi me aconteceu em outro corpo. Ao mesmo tempo que não ouvia nada, ouvi tudo, e ao mesmo tempo que não via nada, vi tudo”.
“Perdeste o juízo ou apenas sonhaste?”, acudiu um terceiro.
“Não sei se estou bêbado ou sóbrio”, tornou ele. “Que pode ser mais desconcertante do que algo que não se revela nem se esconde? Jamais poderei esquecer o que vi, e, no entanto, não tenho a menor idéia de onde aconteceu. Durante toda a noite amei uma beldade sem igual. Não sei quem é nem o que é. Só ficou o amor, e isso é tudo. Mas Deus sabe a verdade.”
Depois do Vale da Unidade vem o Vale do Espanto e da Perplexidade, onde o viajante é presa da tristeza e da melancolia. Ali os suspiros são espadas, e cada respiração é um amargo suspiro. A noite e o dia surgem ao mesmo tempo. Ali há fogo, e, sem embargo disso, o homem se sente deprimido e desalentado. Como, em sua perplexidade, prosseguirá no caminho? Mas quem alcançou a unidade se esquece de tudo e se esquece de si. Se lhe perguntarem: “És ou não és? Tens ou não tens o sentimento da existência? Estás no centro ou na periferia? És mortal ou imortal?”, ele responderá com certeza:
“Nada sei, nada entendo, não tenho consciência de mim mesmo. Estou apaixonado, mas ignoro por quem. Meu coração está cheio e vazio de amor ao mesmo tempo”.
A princesa apaixonada pelo escravo
Um rei cujo império se estendia até os longínquos horizontes, tinha uma filha tão bela quanto a lua. Diante de sua formosura até as fadas se sentiam diminuídas. Seu queixo, em que se via uma covinha, parecia o poço de José, e as mechas de seus cabelos feriam uma centena de corações. As sobrancelhas eram arcos gêmeos, e, quando ela desferia suas flechas, o espaço entre ambas cantava em seu louvor. Os olhos, lânguidos como o narciso, atiravam espinhos dos cílios no caminho do sábio. O rosto era como o sol quando desvirginou a lua. O anjo Gabriel não conseguia despregar a vista das pérolas e rubis da sua boca. Um sorriso dos seus lábios secava a água da vida em quem a contemplava, mas que, ainda assim, implorava uma esmola dos mesmos lábios. Quem lhe vislumbrasse o queixo cairia de ponta-cabeça numa fonte de água fervente.
O rei também tinha um escravo, tão belo que a sol empalidecia e a luz da lua esmaecia em sua presença. Quando ele caminhava pelas ruas e pela praça do mercado, multidões se detinham para contemplá-lo.
Um dia, por acaso, a princesa viu o escravo e, num momento, o coração lhe escorregou das mãos. A razão desertou-a e o amor tomou conta dela. Sua alma, doce como Shirin, ficou amarga. Afastando-se das companheiras, pôs-se a pensar e, pensando e refletindo, começou a arder. Em seguida, chamou suas dez jovens damas de honra, excelentes músicas, que tocavam charamelas e flautas, cujas vozes não se distinguiam da voz dos rouxinóis e cujos cantares, dignos de Davi, despedaçavam a alma. Reunindo-as à sua volta, falou-lhes do seu estado, dizendo estar pronta para sacrificar o nome, a honra e a vida pelo amor daquele moço; pois quando alguém está profundamente apaixonado não presta para mais nada.
“Mas”, ajuntou, “se eu lhe falar do meu amor, ele, sem dúvida, fará alguma coisa impensada. Se se divulgar a notícia de que fui íntima de um escravo, nós dois, ele e eu, sofreremos. Por outro lado, se ele não me possuir, morrerei lastimando-me atrás da cortina do harém. Li uma centena de livros que tratam da paciência, e nem mesmo assim a adquiri. Que posso fazer? Tenho de encontrar um modo de gozar o amor desse esbelto cipreste, de sorte que o desejo do meu corpo se harmonize com o anseio de minha alma — e isso tem de ser feito à revelia dele.”
Disseram, então, as donzelas de voz melodiosa:
“Não sofras. Hoje à noite o traremos aqui, desconhecido de todos, e nem ele ficará sabendo coisa alguma”.
Pouco depois, uma das moças se abeirou, em segredo, do escravo e pediu-lhe, como por brincadeira, que fosse buscar duas taças de vinho. Deitou uma droga numa das taças e fê-lo beber. Ele adormeceu incontinenti, permitindo à jovem levar a cabo o seu plano, e o moço de peito de prata ficou sem notícias dos dois mundos.
Quando a noite chegou, as damas de honra foram, pé ante pé, até onde estava o escravo adormecido, colocaram-no numa liteira e conduziram-no à princesa. Em seguida, sentaram-no num trono de ouro e cingiram-lhe a cabeça com uma coroazinha de pérolas. À meia-noite, ainda meio drogado, ele abriu os olhos e viu um palácio lindo como um paraíso e, à sua volta, assentos de ouro. Alumiavam o lugar dez grandes velas perfumadas com âmbar, e um suave agáloco queimava em vasilhas. As donzelas puseram-se a cantar toadas tão doces que a razão disse adeus ao espírito e a alma, ao corpo. Logo, o sol do vinho circulou à luz das velas. Confuso diante da alegria do ambiente e ofuscado pela formosura da princesa, o moço perdeu o juízo. Já não se achava realmente neste mundo e tampouco no outro. Com o coração cheio de amor e o corpo possuído pelo desejo, em meio a tantas delícias, caiu em êxtase. Tinha o olhar cravado na beleza dela e os ouvidos presos ao som das flautas de bambu. Suas narinas absorviam o perfume do âmbar, e o vinho sabia-lhe na boca a fogo líquido. A princesa beijou-o, e ele derramou lágrimas de alegria, ao mesmo tempo que ela mesclava as suas às dele. Às vezes, ela lhe depositava beijos suaves nos lábios, às vezes sazonava-os com sal; às vezes, desmanchava-lhe os cabelos, às vezes se perdia nos olhos dele. Ele a possuiu; e assim passaram o tempo até que a aurora despontou no oriente. Quando o Zéfiro matutino suspirou, o jovem escravo entristeceu; mas as damas tornaram a adormecê-lo e levaram-no de volta aos seus aposentos.
Ao voltar a si, sem saber por quê, o moço de peito de prata principiou a chorar. Poder-se-ia dizer que tudo terminara e que, portanto, não valia a pena chorar. Ele rasgou as vestes, arrancou os cabelos, jogou terra na cabeça. Os que se achavam próximos perguntaram-lhe por que fazia tudo isso e o que ocorrera.
Ele respondeu:
“Não consigo descrever o que vi, e ninguém mais poderá vê-lo, senão em sonhos, pois o que me aconteceu não pode ter acontecido a ninguém. Nunca houve mistério mais assombroso”.
“Acorda, e conta-nos, pelo menos, uma das cem coisas que sucederam”, pediu outro.
E ele:
“Estou confuso, porque o que vi me aconteceu em outro corpo. Ao mesmo tempo que não ouvia nada, ouvi tudo, e ao mesmo tempo que não via nada, vi tudo”.
“Perdeste o juízo ou apenas sonhaste?”, acudiu um terceiro.
“Não sei se estou bêbado ou sóbrio”, tornou ele. “Que pode ser mais desconcertante do que algo que não se revela nem se esconde? Jamais poderei esquecer o que vi, e, no entanto, não tenho a menor idéia de onde aconteceu. Durante toda a noite amei uma beldade sem igual. Não sei quem é nem o que é. Só ficou o amor, e isso é tudo. Mas Deus sabe a verdade.”
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